1. Neste sábado de um sol a lutar com o nublado da quase tarde - minha alma re-encena essa batalha entre brumas de saturnal desânimo (mas há que se alimentar Peroratio!) -, recordo-me da tarefa, a quase um terço, de responder às Quinze Perguntas de Adolf von Harnack, das quais, quatro já foram. Eis, pois, a quinta:
2. "Se Deus e o mundo (vida em Deus e vida no mundo) são completamente opostos, o que seria capaz de produzir sua estreita união, qual seja a equivalência entre o amor a Deus e o amor ao próximo, o que compõe o núcleo do evangelho? Como essa união é possível sem a maior valorização da moralidade?".
3. conquanto ele a classifique como "científica", Assim posta por Harnack, essa questão reforça minha classificação de sua teologia como racionalização ainda fideísta do cristianismo, um exercício de "secularização" lingüistica da mitologia de que se reveste o conjunto da plataforma teológico-filosófica da religião cristã, talvez uma transposição de termos, ou seja, uma tradução, uma interpretação, uma atualização do conteúdo mítico do cristianismo por meio da linguagem, da filosofia e da cultura européia de sua época - algo como Paulo fez com a tradição judaico-cristã jerosolimitana, porque, afinal, é preciso fazer-se grego, para (pegar) o grego, e judeu para (pegar) o judeu... Digo-o pelo fato de que ainda se pode flagrar "Deus" no centro do argumento de Harnack: "se Deus e o mundo...". Ora, para uma teologia realmente científica, "Deus" não é mais argumento. Não é possível que o seja. Quando o é, sabe-se que jogo aí se joga.
4. Eis o raciocínio. Para uma teologia científica, para o que implica ser ela, necessariamente, sem tergiversações, kantiana e científico-humanista, isto é, implica seu reconhecimento de que o discurso humano pára e deve parar nos limites perscrutáveis da matéria e da história (o supra-material, se existente, é inescrutável ao homem, e pôr, aí, a revelação, é propor e fazer pseudo-ciência - Barth é a reencarnação de Platão, Paulo, Agostinho e Lutero, e nada mais do que isso, o que está de bom tamanho para a fé, mas não para a ciência, bem como para nada que se diga científico, mesmo uma "teologia científica"), sondando, então, isso que lhe é prescrutável por meio das ciências (humanas, da natureza, exatas, cognitivas), todo e qualquer discurso sobre "Deus" (metafísico-mitológico) não constitui outra coisa que não imaginação humana, seja estética, seja política. Logo, não se presta a argumentações, quaisquer que sejam, seja sobre ele, seja a partir dele.
5. Quando Harnack argumenta sobre o que significaria e como se alcançaria a união estreita entre "Deus" e a "vida", ou seja, entre o dever de "amar a Deus" e "amar o próximo", "núcleo do evangelho", pergunta se não é apenas pela moralidade que se pode chegar aí. Nesse preciso momento, Harnack traz para a arena o "mito" de Deus e do "amor a Deus", eventualmente válido, em face da fé, mas inalcançável para a razão - a racionalização da fé não é um exemplo recomendável do uso adequado da razão, há de se saber, certamente.
6. O que Harnack está a fazer é tentar "vencer o adversário em seu próprio campo". Uma vez que a teologia fala de Deus e do amor a Deus, embora não o pudesse, se fosse científica, Harnack racionaliza sobre uma tal relação entre Deus e a vida, como se essa espécie de raciocínio fizesse sentido para a ciência. E não faz. Até porque ela, essa relação, é, pela ciência, reduzida não à relação entre Deus e a vida, mas entre a vida e uma criação da vida, entre a vida humana e um conceito humano, uma relação entre o homem e uma idéia desse mesmo homem, uma relação do homem consigo mesmo - uma experiência estética de projeção de si como outro. No campo científico, não se pode ir além disso - e, caso se vá (e Harnack vai), sai-se do trilho da ciência. Não é obrigatório a ninguém trafegar nesse trilho. É obrigatório, contudo, que qualquer trem que se diga científico trafegue por aí. Harnack quer uma teologia científica? Então pronto.
7. Uma teologia científica não tentará traduzir o conteúdo da teologia clássica - suas doutrinas, seus dogmas, seus mitos - em linguagem contemporânea (tarefa a que um Tillich se dedicou, com o que, a despeito da retórica "próximo-fenomenológica", só pode ser adequadamente classificado como teólogo ontológico, um outro Paulo, comparável, na ousadia, a Harnack). O que uma teologia científica faria, e fará, quando vier à existência, mas, se virá, não sei, é auto-compreender-se, a si e aos teólogos, a partir da crítica científica dos conteúdos, das práticas, das experiências religiosas cristãs, bem como das demais experiências religiosas, porque uma teologia científica, obviamente, não seria "cristã".
8. "Deus" e "amar a Deus" não são "dados" da realidade, de modo que a ciência e uma teologia científica pudessem analisar e compreender. São, antes, produtos noológicos de uma "fé", objetos de investigação crítica, científico-humanista. Logo, não podem, sob nenhuma hipótese, não para uma teologia científica, servir de plataforma de argumentação. Antes, devem tornar-se objeto de pesquisa na condição de construto noológico, de imagens do pensamento e da cultura de um povo historicamente situado.
9. O que Harnack acaba fazendo - será essa sua intenção? - é confrontar uma linguagem mitológica, aplicada a um núcleo mitológico, com uma linguagem pseudo-científica, aplicada (ainda) a um núcleo mitológico. É como se Harnack propusesse aos "teólogos que desprezam uma teologia científica" um novo modo de fazer a velha coisa, mais ou menos, mas, claro, em outra plataforma, como o que faz a Teologia da Libertação em face da teologia tradicional: lá estão os mesmos elementos, a mesma epistemologia, inclusive (platônico-ontológica): só muda o jeito de o teólogo pensar sobre a "relação estreita" entre Deus e a vida...
10. Mais uma vez, penso que aí está uma das razões pelas quais foi relativamente fácil para Karl Barth destroçar, impiedosamente, a teologia liberal (não o fez sozinho, claro, mas quem há de afirmar que Karl Barth não foi o comandante-em-chefe dessa batalha?). A teologia liberal, essa, ensaiada por Harnack, ainda é "fé", ainda opera segundo o programa da fé. Faz-se tímida, acanhada, esforçando-se por aproximar a fé do lastro lingüístico de sua cultura, de seu tempo, sem, contudo, transformar, radicalmente, o jogo. Dois mil anos de tradição e expertise foram suficientes para demonstrar que é preciso mais do que liberalismo "crente" para convencer a velha ontologia a reformular-se. O jogo vem sendo ganho a dois mil anos, porque se haveria de mexer no time?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. "Se Deus e o mundo (vida em Deus e vida no mundo) são completamente opostos, o que seria capaz de produzir sua estreita união, qual seja a equivalência entre o amor a Deus e o amor ao próximo, o que compõe o núcleo do evangelho? Como essa união é possível sem a maior valorização da moralidade?".
3. conquanto ele a classifique como "científica", Assim posta por Harnack, essa questão reforça minha classificação de sua teologia como racionalização ainda fideísta do cristianismo, um exercício de "secularização" lingüistica da mitologia de que se reveste o conjunto da plataforma teológico-filosófica da religião cristã, talvez uma transposição de termos, ou seja, uma tradução, uma interpretação, uma atualização do conteúdo mítico do cristianismo por meio da linguagem, da filosofia e da cultura européia de sua época - algo como Paulo fez com a tradição judaico-cristã jerosolimitana, porque, afinal, é preciso fazer-se grego, para (pegar) o grego, e judeu para (pegar) o judeu... Digo-o pelo fato de que ainda se pode flagrar "Deus" no centro do argumento de Harnack: "se Deus e o mundo...". Ora, para uma teologia realmente científica, "Deus" não é mais argumento. Não é possível que o seja. Quando o é, sabe-se que jogo aí se joga.
4. Eis o raciocínio. Para uma teologia científica, para o que implica ser ela, necessariamente, sem tergiversações, kantiana e científico-humanista, isto é, implica seu reconhecimento de que o discurso humano pára e deve parar nos limites perscrutáveis da matéria e da história (o supra-material, se existente, é inescrutável ao homem, e pôr, aí, a revelação, é propor e fazer pseudo-ciência - Barth é a reencarnação de Platão, Paulo, Agostinho e Lutero, e nada mais do que isso, o que está de bom tamanho para a fé, mas não para a ciência, bem como para nada que se diga científico, mesmo uma "teologia científica"), sondando, então, isso que lhe é prescrutável por meio das ciências (humanas, da natureza, exatas, cognitivas), todo e qualquer discurso sobre "Deus" (metafísico-mitológico) não constitui outra coisa que não imaginação humana, seja estética, seja política. Logo, não se presta a argumentações, quaisquer que sejam, seja sobre ele, seja a partir dele.
5. Quando Harnack argumenta sobre o que significaria e como se alcançaria a união estreita entre "Deus" e a "vida", ou seja, entre o dever de "amar a Deus" e "amar o próximo", "núcleo do evangelho", pergunta se não é apenas pela moralidade que se pode chegar aí. Nesse preciso momento, Harnack traz para a arena o "mito" de Deus e do "amor a Deus", eventualmente válido, em face da fé, mas inalcançável para a razão - a racionalização da fé não é um exemplo recomendável do uso adequado da razão, há de se saber, certamente.
6. O que Harnack está a fazer é tentar "vencer o adversário em seu próprio campo". Uma vez que a teologia fala de Deus e do amor a Deus, embora não o pudesse, se fosse científica, Harnack racionaliza sobre uma tal relação entre Deus e a vida, como se essa espécie de raciocínio fizesse sentido para a ciência. E não faz. Até porque ela, essa relação, é, pela ciência, reduzida não à relação entre Deus e a vida, mas entre a vida e uma criação da vida, entre a vida humana e um conceito humano, uma relação entre o homem e uma idéia desse mesmo homem, uma relação do homem consigo mesmo - uma experiência estética de projeção de si como outro. No campo científico, não se pode ir além disso - e, caso se vá (e Harnack vai), sai-se do trilho da ciência. Não é obrigatório a ninguém trafegar nesse trilho. É obrigatório, contudo, que qualquer trem que se diga científico trafegue por aí. Harnack quer uma teologia científica? Então pronto.
7. Uma teologia científica não tentará traduzir o conteúdo da teologia clássica - suas doutrinas, seus dogmas, seus mitos - em linguagem contemporânea (tarefa a que um Tillich se dedicou, com o que, a despeito da retórica "próximo-fenomenológica", só pode ser adequadamente classificado como teólogo ontológico, um outro Paulo, comparável, na ousadia, a Harnack). O que uma teologia científica faria, e fará, quando vier à existência, mas, se virá, não sei, é auto-compreender-se, a si e aos teólogos, a partir da crítica científica dos conteúdos, das práticas, das experiências religiosas cristãs, bem como das demais experiências religiosas, porque uma teologia científica, obviamente, não seria "cristã".
8. "Deus" e "amar a Deus" não são "dados" da realidade, de modo que a ciência e uma teologia científica pudessem analisar e compreender. São, antes, produtos noológicos de uma "fé", objetos de investigação crítica, científico-humanista. Logo, não podem, sob nenhuma hipótese, não para uma teologia científica, servir de plataforma de argumentação. Antes, devem tornar-se objeto de pesquisa na condição de construto noológico, de imagens do pensamento e da cultura de um povo historicamente situado.
9. O que Harnack acaba fazendo - será essa sua intenção? - é confrontar uma linguagem mitológica, aplicada a um núcleo mitológico, com uma linguagem pseudo-científica, aplicada (ainda) a um núcleo mitológico. É como se Harnack propusesse aos "teólogos que desprezam uma teologia científica" um novo modo de fazer a velha coisa, mais ou menos, mas, claro, em outra plataforma, como o que faz a Teologia da Libertação em face da teologia tradicional: lá estão os mesmos elementos, a mesma epistemologia, inclusive (platônico-ontológica): só muda o jeito de o teólogo pensar sobre a "relação estreita" entre Deus e a vida...
10. Mais uma vez, penso que aí está uma das razões pelas quais foi relativamente fácil para Karl Barth destroçar, impiedosamente, a teologia liberal (não o fez sozinho, claro, mas quem há de afirmar que Karl Barth não foi o comandante-em-chefe dessa batalha?). A teologia liberal, essa, ensaiada por Harnack, ainda é "fé", ainda opera segundo o programa da fé. Faz-se tímida, acanhada, esforçando-se por aproximar a fé do lastro lingüístico de sua cultura, de seu tempo, sem, contudo, transformar, radicalmente, o jogo. Dois mil anos de tradição e expertise foram suficientes para demonstrar que é preciso mais do que liberalismo "crente" para convencer a velha ontologia a reformular-se. O jogo vem sendo ganho a dois mil anos, porque se haveria de mexer no time?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
(2009/147) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - I
(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)
(2009/150) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - III (pergunta 1, parte 2)
(2009/152) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - IV (pergunta 2)
(2009/153) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - V (pergunta 3)
(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)
(2009/150) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - III (pergunta 1, parte 2)
(2009/152) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - IV (pergunta 2)
(2009/153) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - V (pergunta 3)
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