sexta-feira, 17 de abril de 2009

(2009/173) Platonismo, cartesianismo, pós-modernismo - um padrão


1. O livro que acabo de recomendar, Revolução Francesa e Iluminismo, de Jorge Grespan, deu-me uma percepção mais clara da relação entre platonismo e cartesianismo. Grespan, na verdade, faz uma distinção importante entre "iluminismo cartesiano" e "iluminismo empirista" (cartesianismo versus empirismo), afirmando que o primeiro pressupõe a soberania da "razão" especulitivo-idealista, baseada na matemática e nas abstrações da geometria, o que implica em dizer a condição "inata" e "imaterial" das "idéias", ao passo que o empirismo inglês, frontalmente em desacordo com Descartes, pressupõe que a razão apenas constitua instrumento de tratamento dos estímulos sensoriais provenientes da matéria. Assim, eu posso entrever um neo-platonismo não-mitológico, mas metafísico, em Descartes, contra um aristotelismo não-mitológico no empirismo. Dois "iluminismos" abolsutamente divergentes.

2. É interessante perceber que há, aí, um padrão polar, da mesma forma como houve entre Platão e Aristóteles, o primeiro afirmando que a matéria, logo, os sentidos, eram obstáculos ao conhecimento "verdadeiro", ao passo que Aritóteles afirmando justamente o contrário, que tanto a matéria quanto os sentidos, articulados pela "razão", constituíam elementos fundamentais do processo de conhecimento humano. O padrão polar repete-se, agora, entre o cartesianismo (neo-platonismo) e o empirismo (neo-aristotelismo).

3. Recentemente, vemo-nos tomados por um terceiro padrão, a que se está convencionando chamar de "pós-modernismo" - que só pode agradar a neo-platônicos, seja de qual tipo forem, cartesiano-idealista, lingüístico-estruturalista, teológico-metafórico. Assim como em Platão e em Descartes, cada qual a seu modo, é óbvio, que não se trata da ressurreição do mesmo, mas do ressurgimento da mesma estrutura de pensamento, transformada pelas condições do tempo histórico, o pós-modernismo desconsidera pragmaticamente (politicamente) e programaticamente (estrategicamente) a "realidade" - é no interior da linguagem que o mundo se processa, independente da realidade, de modo que a realidade é plenamente dispensável (e, naturalmente, inacessível à crítica).

4. O padrão que se pode perceber nesses três momentos, platonismo, cartesianismo e pós-modernismo é o dualismo matéria-espírito, corpo-alma, cérebro-pensamento. Em nenhum deles, o pensamento deve satisfações à matéria, de modo que a sua declaração é auto-legitimada, contrariamente ao que se pôde apreender do teorema de Gödel, segundo o qual nenhum sistema ideológico dispõe, em si mesmo, das condições necessárias para sua auto-demonstração - um sistema ideológico só pode ser avaliado por outro sistema ideológico. Platonismo (a verdade vem da Providência: "revelação"), cartesianismo ("cogito, ergo sum") e pós-modernismo (todo discurso é epistemologicamente equivalente) legitimam-se a si mesmos, e isso a partir de suas próprias e axiomáticas declarações, as quais, uma vez pronunciadas, fundam o mundo.

5. Ao lado desse padrão idealista-ascético-monaquista, há um outro padrão, reacionário em relação a esse: aristotelismo, empirismo, cognitivismo. Segundo esses três momentos-padrão, a "verdade" constitui um construto intercambial entre, de um lado, a matéria, a física, o real, a Tabela Periódica, e, de outro, a mente humana, o espírito humano, a consciência humana. Ela não é nem um atributo da própria matéria, nem um atributo da própria consciência, mas uma emergência relacional entre ambas: dados físicos e estruturas ideológico-conceituais de tratamento sensorial dessa matéria.

6. Assim, no que me diz respeito, a exegese é uma província desse segundo padrão: ela, a exegese, considera a objetividade da expressão consciente humana no registro histórico, e, por meio de sistemas ideológico-metodológicos de abordagem, procura propor quadros conceituais de compreensão daquele dado concreto da história - daquele fato bruto. As especulações metafísicas da teologia clássica, contudo (uma teologia platônica), bem como a nova moda teológica da metáfora (teologia pós-moderna) constituem, por sua vez, materializações daquele desprezo antigo à materialidade da existência, conquanto não ao poder de determinar o comportamento das massas.

7. Até hoje, o dualismo imperou. O platonismo deu as cartas durante dois mil anos e meio, sob Platão, Descartes e, agora, a onda pós-moderna. As reações materiais foram sempre minoradas. Aristóteles desaparece do Ocidente por mil e quinhentos anos, ressurge por volta do ano mil, é coonestado pela "teologia aristotélica" (um oxímoro!), supostamente superada por sua versão "secular", o cartesianismo imaterial, e, depois de uma grave crise, pressionado pelo empírismo iluminista (responsável, segundo Grespan, pela Revolução Francesa e a alteração, por isso, inclusive, do conceito de "revolução"), retorna, agora, na forma de uma pós-modernidade pós-crítica (a-crítica, deve-se dizer).

8. Talvez aí esteja uma das razões pela qual nem o Protestantismo tenha conseguido levar a sério a exegese - enquanto instituição, o Protestantismo jamais levou a sério a exegese, mas apenas enquanto atividade "iluminista-empirista" de caráter crítico, levado a termo por consciências independentes, emancipadas. Justamente durante o auge do iluminismo crítico-empírito (1750-1850), a exegese logrou conquistar grande parte do terreno dominado pela Teologia Sistemática (pouca coisa há mais platônica do que a Teologia Sistemática). A filologia clássica desse período deu à exegese seu aspecto crítico-científico que ela tem até hoje, isso quando não cooptada por metodologias pseudo-sérias (como o método histórico-gramatical, que, de exegético, possui, apenas, o movimento mecânico dos olhos). Mas logo a Teologia Sistemática, de padrão platônico, reagiu e, em setenta anos (número simbólico, percebe-se: 1850-1920), Karl Barth reconstrói o feudo teológico clássico-platônico.

9. O fenômeno mais curioso - e, por isso, mais revelador, é o Vaticano II. Não estaria fantasiando se visse, aí, uma vitória da exegese sobre a Teologia Sistemática - um punhal "aristotélico" (a rigor, romântico-iluminista) no coração de Platão. De fato, com o Vaticano II, um sistema duas vezes milenar de controle platônico-normativo da interpretação rui, uma década e acaba toda e qualquer possibilidade de uma imaterialidade do critério hermenêutico, porque se afirma, aí, que o método adequado para a compreensão das Escrituras é o método histórico-crítico. Nem em quinhetos anos de história o Protestantismo chegou perto de algo assim - não há "Igreja" protestante que use, pra valer, o método histórico-crítico, e onde quer que instituições vinculadas à Igreja o usem, "ela" reage. Roma, agora, contudo, faz desse o método.

10. Naturalmente que eu duvido, já o disse, que Roma se mantenha nesse trilho. Do ponto de vista católico, foi um terrível equívoco, um "cochilo", provavelmente causado por uma sonolência política, uma piscadela da vigilância política, que, contudo, exigirá uma extraordínária capacidade, que Roma, todavia, tem, de converter a si todas as coisas, e de sobrevaler-se a todo entrave, para reverter a situação a seu favor.

11. Quanto a mim, recuso-me tanto o padrão platônico - aí a política suprime a política, porque onde não há crítica possível, o poder se agiganta (enquanto reis comandavam Israel e Judá, houve profetas: quando sacerdotes assumiram o poder, eles foram aniquilados) - quanto o apelo da massificação, do cantar em coro, do arroubo coletivo e cego, e compor o exército. Massa, não. Cantar? Não eu. Deserto. Quero tentar a sobrevivência lúcida durante esse período de transição. Esse é um momento crítico da história - sobreviver a ele terá sido um enorme feito.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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