1. Depois de vencido o primeiro terço da caminha no esforço de responder às quinze perguntas de Adolf von Harnack, é pegar as bagagens e dar conta do segundo terço. Assim traduzo a questão seis, de Harnack: "se Deus e o mundo (vida em Deus e vida no mundo) são completamente opostos, como é que a educação na piedade, que está em Deus, tornou-se possível? Mas como a educação é possível sem conhecimento histórico e a mais alta valorização da moralidade?" (1).
2. Mais uma vez, Harnack discute a questão a partir da plataforma teológica. Seu argumento é: se o mundo de Deus é tão distinto do mundo humano, não se explica como um possa envolver-se com o outro. Daí que opta pelo mundo humano, para, nele, enconrar o mesmo mundo de Deus, mas humanizado - "liberalizado". À "piedade" (do mundo de Deus, "goodness") segue-se a "moralidade", do mundo humano. Com efeito, na prática, medidas as atitudes, os comportamentos, a moralidade é a contraparte secular, humana, liberal, da piedade. Basta que sejam suprimidos os ritos e os anexos teológicos das rotinas da piedade para que se obtenha um conjunto de práticas naturalmente morais, o núcleo significativo da piedade é a própria moralidade.
3. Trata-se de um modo de argumento relativamente comum à teologia situada na ala mais crítca do espectro teológico. Recentemente, o exegeta histórico-crítico católico-romano, Simian-Yofre, empregou-o, quando discutia o conceito de "Palavra de Deus" em relação ao texto da Bíblia Hebraica. Dada a sua argumentação, bem como sua ideologia, ele, acertadamente, questiona: "se a profundidade da palavra de Deus não está presente na palavra humana, de que serve a Escritura?" (2). A rigor, para sustentar, com a imagem dos termos grafados, a eisegese alegórica que a teologia precisa aplicar à letra morta do passado, vertendo-a em sentidos apropriados à sua própria configuração ideológico-doutrinária. Simian-Yofre sabe disso - na verdade não se trata de uma "pergunta", mas de uma denúncia.
4. Ele dirá, na conclusão: "parece haver, na base dessas formulações e posturas, uma filosofia da justaposição sem chegar à integração (...). O autor humano e o autor divino, o texto de um e o 'não-texto' do outro, permanecem lado a lado, quase sem se tocar, tornando-se assim, inútil o esforço para ler o primeiro (porque isso não nos permite chegar à Palavra divina) e inatingível o modo (espiritual, místico?) de interpretar o outro, que parece não poder exprimir-se com algum método" (3). Não se dá o mesmo entre "piedade" e "moralidade", nos termos em que colocava a questão, à época, Harnack? Vejamos: a) se a piedade não é propriamente humana, mas divina, b) se a vida em Deus não é a mesma coisa que a vida humana, c) se a educação humana não prescinde da história e da cultura, d) como educar o homem, sem história e sem moralidade, de um jeito que a isso se pudesse chamar de "piedade"? Ou a educação humana é inútil, ou a educação humana e a piedade são a mesma coisa...
5. Em termos políticos, estratégicos e didáticos, o que tanto Harnack quanto Simian-Yofre denunciam é uma disfunção cognitiva própria do poder religioso, onde quer que ele se encontre. Nada há, sob nenhuma circunstância, nas religiões e nas teologias, que não seja humano. A piedade não é divina, é humana. O êxtase? Humano. A liturgia? Humana. A mísica? Humana. Tudo é humano. Nada é não-humano. De modo que, com Simian-Yofre, faz todo sentido "descer" a "Palavra de Deus", em regime teológico, até a "palavra humana" - o que os homens e, eventualmente, as mulheres escreveram na Bíblia Hebraica, aquele sentido com que se expressaram, isso é, precisamente, a "Palavra de Deus". Nos termos de Harnack e de sua teologia liberal, a mais refinada moralidade humana, a "civilidade" ocidental, a ética, as regras sociais de relação, eis aí, ao mesmo tempo, a vida humana e a vida possível "em Deus".
6. Diria que essa percepção de Harnack, bem como a de Simian-Yofre, sejam conseqüências da aplicação irrestrita de um princípio cristológico particularmente caro à tradição protestante: a encarnação. A melhor civilização humana possível equivale à melhor configuração possível da encarnação, de modo que não apenas passa a não haver mais conflito entre a vida humana e a vida "em Deus" (quanto mais humana, mais encarnada, mais divina), acessada por meio da "quenosis", da "encarnação": além da superação do conflito subjacente à teologia teísta, essa peculiar reflexão protestante assume a vida humana como a vida "em Deus" possível e adequada ao cristão moderno.
7. A exegese histórico-crítica, ferramenta humana e moderna, constitui a chave de acesso à "Palavra de Deus", já que essa "Palavra de Deus" faz-se idêntica à palavra humana, tendo assumido também essa forma histórica - é o raciocínio de Simian-Yofre. A moral, a ética, expressão civilizatória humana, constitui a chave para a expressão da "vida em Deus" possível ao homem moderno. Na prática, a exegese de Simian-Yofre e a moralidade de Harnack torna plenamente dispensáveis até o "mito" da "Palavra de Deus" e da "vida em Deus", na medida em que elegem a dimensão humana como sendo aquela única possível ao homem moderno - o humano, isso é o divino possível...
8. No entanto, seu argumento é, ainda, teológico, porque ainda estão expressando o valor, seja da "palavra humana", seja da "vida humana", com base no valor que ambas adquirem pelo fato de constituirem, enquanto expressões humanas, também a expressão do divino. Há, certamente, um esforço de superar a dicotomia disjuntiva - a separação insuperável -, própria da teologia "sacerdotal", isto é, metafísica e ontológica, presente no discurso da relação entre "palavra humana" (texto) e "Palavra de Deus" (revelação), entre "vida humana" e "vida em Deus", esforço esse distendido na direção de trazer para baixo - quenosis - a dimensão superior da teologia.
9. Permitam-me arriscar-me a dizer que se trata, ainda, mas nos seus próprios termos e geografias, de operação comparável à de Lévinas, de "trazer" para baixo o "Outro", tornando-o manifesto na "face do outro", conquanto esse "outro", que olho, interessa-me na medida em que é o espelho do "Outro" - o "sentido" do outro, o atrator no outro, não é o "outro" em si, mas o "Outro" que posso ver nele. Talvez se trate, no entanto, apenas de retórica. Talvez Harnack e Simian-Yofre estejam selecionando argumentos que sejam válidos para uma "platéia" cristã, e que, eventualmente, precise de "acreditar", ainda, que há alguma coisa de "divino" (no sentido do "velho" conceito) no humano, e que o valor desse humano é que é assim que ele é divino: ou seja, se a platéia só tem olhos para um divino, fazer do humano esse divino é uma estratégia de adestrar a consciência dessa platéia a dedicar-se àquele humano, ainda que assim o faço por força de creditar a esse humano um status de sacramento. Feuerbach foi - e voltou.
10. O que fica de irrecusável, em Harnack, é a sua declaração de que não há educação possível que não seja constituída de história e moralidade. Todo o "tu deves" da piedade constitui um "tu deves" humano, histórico e moral. A educação, toda, mesmo a "mística" (não se vê os modernos congressos de espiritualidade? Ao final, as pessoas continuarão humanas, com atitudes e comportamentos absolutamente humanos, por mais excêntricos, esdrúxulos e esquizofrênicos que sejam - é o "congressista" quem dirá, e a "platéia" há de crer, que se trata, aí, de "piedade" não-humana, chancelada por Deus e tudo), nada mais é do que prática humana confeitada de retórica teológica. Mesmo o sentimento, a emoção...
11. Penso que ainda não é o suficiente. O caminho é esse, mas não pára aí. No ponto em que ele se encontra, uma plataforma quase-mas-não-ainda-feuerbachiana, o argumento quenósico deveria ser transformado em argumento científico-humanista feuerbachiano: não há nenhuma possibilidade (nem a doutrina da revelação [Barth é um prestidigitador, mas exige uma platéia atormentada], nem a prática da mística, nem o rito, nem o mito, nem os mistérios, nem o esoterismo) de o homem fugir à sua condição humana, e mesmo as "religiões", todas, até a "nossa", disso não passa. Depois desse banho de água fria, muito, muito fria, o espírito humano poderia retornar à sua relação com os mitos, livre, contudo, do poder de os mitos fazerem-se passar por conhecimento mais confiável do que o bom senso.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 86.
2. Horácio SIMIAN-YOFRE (coord.), Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20.
3. Idem, p. 20.
2. Mais uma vez, Harnack discute a questão a partir da plataforma teológica. Seu argumento é: se o mundo de Deus é tão distinto do mundo humano, não se explica como um possa envolver-se com o outro. Daí que opta pelo mundo humano, para, nele, enconrar o mesmo mundo de Deus, mas humanizado - "liberalizado". À "piedade" (do mundo de Deus, "goodness") segue-se a "moralidade", do mundo humano. Com efeito, na prática, medidas as atitudes, os comportamentos, a moralidade é a contraparte secular, humana, liberal, da piedade. Basta que sejam suprimidos os ritos e os anexos teológicos das rotinas da piedade para que se obtenha um conjunto de práticas naturalmente morais, o núcleo significativo da piedade é a própria moralidade.
3. Trata-se de um modo de argumento relativamente comum à teologia situada na ala mais crítca do espectro teológico. Recentemente, o exegeta histórico-crítico católico-romano, Simian-Yofre, empregou-o, quando discutia o conceito de "Palavra de Deus" em relação ao texto da Bíblia Hebraica. Dada a sua argumentação, bem como sua ideologia, ele, acertadamente, questiona: "se a profundidade da palavra de Deus não está presente na palavra humana, de que serve a Escritura?" (2). A rigor, para sustentar, com a imagem dos termos grafados, a eisegese alegórica que a teologia precisa aplicar à letra morta do passado, vertendo-a em sentidos apropriados à sua própria configuração ideológico-doutrinária. Simian-Yofre sabe disso - na verdade não se trata de uma "pergunta", mas de uma denúncia.
4. Ele dirá, na conclusão: "parece haver, na base dessas formulações e posturas, uma filosofia da justaposição sem chegar à integração (...). O autor humano e o autor divino, o texto de um e o 'não-texto' do outro, permanecem lado a lado, quase sem se tocar, tornando-se assim, inútil o esforço para ler o primeiro (porque isso não nos permite chegar à Palavra divina) e inatingível o modo (espiritual, místico?) de interpretar o outro, que parece não poder exprimir-se com algum método" (3). Não se dá o mesmo entre "piedade" e "moralidade", nos termos em que colocava a questão, à época, Harnack? Vejamos: a) se a piedade não é propriamente humana, mas divina, b) se a vida em Deus não é a mesma coisa que a vida humana, c) se a educação humana não prescinde da história e da cultura, d) como educar o homem, sem história e sem moralidade, de um jeito que a isso se pudesse chamar de "piedade"? Ou a educação humana é inútil, ou a educação humana e a piedade são a mesma coisa...
5. Em termos políticos, estratégicos e didáticos, o que tanto Harnack quanto Simian-Yofre denunciam é uma disfunção cognitiva própria do poder religioso, onde quer que ele se encontre. Nada há, sob nenhuma circunstância, nas religiões e nas teologias, que não seja humano. A piedade não é divina, é humana. O êxtase? Humano. A liturgia? Humana. A mísica? Humana. Tudo é humano. Nada é não-humano. De modo que, com Simian-Yofre, faz todo sentido "descer" a "Palavra de Deus", em regime teológico, até a "palavra humana" - o que os homens e, eventualmente, as mulheres escreveram na Bíblia Hebraica, aquele sentido com que se expressaram, isso é, precisamente, a "Palavra de Deus". Nos termos de Harnack e de sua teologia liberal, a mais refinada moralidade humana, a "civilidade" ocidental, a ética, as regras sociais de relação, eis aí, ao mesmo tempo, a vida humana e a vida possível "em Deus".
6. Diria que essa percepção de Harnack, bem como a de Simian-Yofre, sejam conseqüências da aplicação irrestrita de um princípio cristológico particularmente caro à tradição protestante: a encarnação. A melhor civilização humana possível equivale à melhor configuração possível da encarnação, de modo que não apenas passa a não haver mais conflito entre a vida humana e a vida "em Deus" (quanto mais humana, mais encarnada, mais divina), acessada por meio da "quenosis", da "encarnação": além da superação do conflito subjacente à teologia teísta, essa peculiar reflexão protestante assume a vida humana como a vida "em Deus" possível e adequada ao cristão moderno.
7. A exegese histórico-crítica, ferramenta humana e moderna, constitui a chave de acesso à "Palavra de Deus", já que essa "Palavra de Deus" faz-se idêntica à palavra humana, tendo assumido também essa forma histórica - é o raciocínio de Simian-Yofre. A moral, a ética, expressão civilizatória humana, constitui a chave para a expressão da "vida em Deus" possível ao homem moderno. Na prática, a exegese de Simian-Yofre e a moralidade de Harnack torna plenamente dispensáveis até o "mito" da "Palavra de Deus" e da "vida em Deus", na medida em que elegem a dimensão humana como sendo aquela única possível ao homem moderno - o humano, isso é o divino possível...
8. No entanto, seu argumento é, ainda, teológico, porque ainda estão expressando o valor, seja da "palavra humana", seja da "vida humana", com base no valor que ambas adquirem pelo fato de constituirem, enquanto expressões humanas, também a expressão do divino. Há, certamente, um esforço de superar a dicotomia disjuntiva - a separação insuperável -, própria da teologia "sacerdotal", isto é, metafísica e ontológica, presente no discurso da relação entre "palavra humana" (texto) e "Palavra de Deus" (revelação), entre "vida humana" e "vida em Deus", esforço esse distendido na direção de trazer para baixo - quenosis - a dimensão superior da teologia.
9. Permitam-me arriscar-me a dizer que se trata, ainda, mas nos seus próprios termos e geografias, de operação comparável à de Lévinas, de "trazer" para baixo o "Outro", tornando-o manifesto na "face do outro", conquanto esse "outro", que olho, interessa-me na medida em que é o espelho do "Outro" - o "sentido" do outro, o atrator no outro, não é o "outro" em si, mas o "Outro" que posso ver nele. Talvez se trate, no entanto, apenas de retórica. Talvez Harnack e Simian-Yofre estejam selecionando argumentos que sejam válidos para uma "platéia" cristã, e que, eventualmente, precise de "acreditar", ainda, que há alguma coisa de "divino" (no sentido do "velho" conceito) no humano, e que o valor desse humano é que é assim que ele é divino: ou seja, se a platéia só tem olhos para um divino, fazer do humano esse divino é uma estratégia de adestrar a consciência dessa platéia a dedicar-se àquele humano, ainda que assim o faço por força de creditar a esse humano um status de sacramento. Feuerbach foi - e voltou.
10. O que fica de irrecusável, em Harnack, é a sua declaração de que não há educação possível que não seja constituída de história e moralidade. Todo o "tu deves" da piedade constitui um "tu deves" humano, histórico e moral. A educação, toda, mesmo a "mística" (não se vê os modernos congressos de espiritualidade? Ao final, as pessoas continuarão humanas, com atitudes e comportamentos absolutamente humanos, por mais excêntricos, esdrúxulos e esquizofrênicos que sejam - é o "congressista" quem dirá, e a "platéia" há de crer, que se trata, aí, de "piedade" não-humana, chancelada por Deus e tudo), nada mais é do que prática humana confeitada de retórica teológica. Mesmo o sentimento, a emoção...
11. Penso que ainda não é o suficiente. O caminho é esse, mas não pára aí. No ponto em que ele se encontra, uma plataforma quase-mas-não-ainda-feuerbachiana, o argumento quenósico deveria ser transformado em argumento científico-humanista feuerbachiano: não há nenhuma possibilidade (nem a doutrina da revelação [Barth é um prestidigitador, mas exige uma platéia atormentada], nem a prática da mística, nem o rito, nem o mito, nem os mistérios, nem o esoterismo) de o homem fugir à sua condição humana, e mesmo as "religiões", todas, até a "nossa", disso não passa. Depois desse banho de água fria, muito, muito fria, o espírito humano poderia retornar à sua relação com os mitos, livre, contudo, do poder de os mitos fazerem-se passar por conhecimento mais confiável do que o bom senso.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
1. Adolf VON HARNACK, Fifteen Questions to the Despisers of Scientific Theology, Christliche Welt, 11 de janeiro de 1923, em: Martin RUMSCHEIDT, Adolf von Harnack: liberal theology at its height. London: Collins, 1989, p. 86.
2. Horácio SIMIAN-YOFRE (coord.), Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20.
3. Idem, p. 20.
(2009/147) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - I
(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)
(2009/150) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - III (pergunta 1, parte 2)(2009/152) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - IV (pergunta 2)(2009/153) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - V (pergunta 3)
(2009/158) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - VI (pergunta 4)
(2009/149) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - II (pergunta 1, parte 1)
(2009/150) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - III (pergunta 1, parte 2)(2009/152) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - IV (pergunta 2)(2009/153) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - V (pergunta 3)
(2009/158) Resposta às "Quinze Perguntas" de Adolf von Harnack - VI (pergunta 4)
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