sexta-feira, 22 de maio de 2009

(2009/281) Três homens que se foram


1. Rudolf Bultmann (1884-1976), Paul Tillich (1886-1965) e Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Três homens. Uma pátria. Um tempo. Uma Igreja. Uma história.

2. Uma história? 1933. Dá-se a subida de Hitler ao poder. Nesse mesmo 1933, Tillich é expurgado da cátedra - o primeiro professor não-judeu a sofrer a intervenção do Estado. A Decisão Socialista é apreendida pela polícia alemã. Nesse mesmo ano, bom matemático, Tillich deixa a Alemanha, e emigra para os Estados Unidos da América. É provável que, se ficasse, tivesse que optar entre pregar , ensinar e escrever "conveniências" e enfrentar a acusação de "alta traição", escolher entre a vida e a morte, escolher entre a consciência e a rendição. Escolheu. Talvez eu tivesse feito o mesmo. O que não muda os fatos.

3. Rudolf Bultmann permaneceu na Alemanha. Não estou inteirado de sua relação com a alta política alemã. A colaboração formal e informal entre a Igreja e o Estado Nacional-socialista alemão não foi privilégio católico... Rudolf tinha inclinações nacional-socialistas? Apenas "acomodou-se"? Os casos de Tillich e de Bonhoeffer sugerem questões nervosas - que implicações há em "permanecer"? Seja como for, é sugestivo o trabalho de Bultmann no centro nervoso de uma Alemanha nazista, anti-sionista, judeo-fóbica. O Antigo Testamento - judeu - é "marcionizado" - a Igreja não lhe deve satisfações, nem o tem como "fundamento". O Novo Testamento é arrancado de seu chão histórico - chamou-se a isso desmitologização, mas, fosse mesmo isso que se diz ter sido, o querigma teria sido necessariamente jogado fora, já que também o querigma é mito, de modo que o nome é bem outro... O resultado é um Cristianismo não-judeu - sob medida para um Império Contra-judeu. Constantino e Hitler são perfeitos paralelos para a relação institucional da Igreja... Aliás, Pinochet e Brasília, também... A Itália de Mussoline que o diga! A "Igreja" ama o poder... porque se pensa sê-lo... Restam as resistências locais, lúcidas, loucas...

4. 1939. Há um cheiro de guerra no ar. Há teólogos saindo da Alemanha e emigrando para os Estados Unidos. É aí, em 1939, que se encontra Dietrich Bonhoeffer. Seu olhar atravessa o Atlântico. Permanecer fora da Alemanha, nessa hora, parece-lhe fuga. Ele volta. Ele faz a travessia contrária. É como Neo, em Matrix. Juntas, as gargantas de Deus e do Diabo esperam por ele... E ele o sabe.

5. Esse Bonhoeffer é inspirador. Será preso - obviamente. Estará só. A Igreja lhe tem por constrangedora figura, porque sua presença basta para denunciar o compromisso da Ávida com o Ávido. A Ireja Confessante é seu reduto - um espinho nos olhos de tantos, de todo poder constituído. O cárcere é seu destino. Não basta - a morte, seu algoz. Todos estão aliviados, agora.

6. Não quero transformar Bonhoeffer em mártir - que foi. Assumiu sua consciência, não deve nada a ninguém, ningém lhe deve nada. Resta-nos o espelho a nos encarar... Mas é impossível não medir a distância entre ele e os demais, ele, onde a Teologia se fez pastoral mesmo. E, contudo, é um dos poucos, dos raros, quase um dos únicos teólogos do século XX que levaram a sério o século XIX. Não, nenhum outro, que eu possa me lembrar, exceto, a seu tempo e modo, um von Harnack, seu mestre, e um Hans Küng, respectivamente, entrada e saída dessa rolha reacionária que foi a Teologia do século XX, tão reacioária que, mesmo onde se fez libertação, ainda é por meio da alienação que ela opera, com "crianças" e "bestas de carga", mas, não, com gente adulta.

7. E Bonhoeffer pensava isso do homem europeu: um mundo em estado adulto. Barth, ele dizia, é medieval (e eu achando que fora eu a ter cunhado a expressão - desculpe, Bonhoeffer: créditos seus...). Bultmann, um homem que faz hermenêtica pela metade, ou seja, pára onde convém (onde lhe disseram convir?). Bonhoeffer, na cadeia, escrevendo as cartas a seu amigo Eberhard Bethge, preparava seu espírito para enfrentar a Transformação da Teologia (parodio, aqui, Transformação da Filosofia, de Karl-Otto Apel). Eis que parágrafo comovente:

7.1 "O mundo adulto (...), ou o mundo tornado adulto, é um conceito, genericamente, de derivação kantiana, mas (...) Bonhoeffer baseou-se sobretudo em Dilthey, do qual deriva diretamente o conceito e a descrição do processo histórico que levou à maioridade (...) do mundo moderno, que Bonhoeffer sintetiza na carta de 16-7-1944. Ele aceita a legitimidade do processo, mas é justamente daí que provém a questão: 'Cristo e o mundo tornado adulto'; quer dizer, a questão é como conjugar o processo do mundo em direção à autonomia com a fé em Cristo. A originalidade de Bonhoeffer não está na elaboração do conceito de 'mundo adulto', nem sequer na reconstrução histórica desse processo - elementos derivados diretamente de Dilthey -, e sim na formulação do problema teológico que daí provém" (Rosino GIBELINI, A eologia do Século XX, p. 116-117).

8. Barth, Bultmann, Tillich, Moltmann, Pannenberg - a lista é interminável -, não "levaram (apenas não suficientemente?) a sério" o séclo XIX (quanto a Tillich, cf. meus Por uma teologia pós-metafísica – diálogo com um epílogo circunstancial e Por que se escondeu esse menino? – a Teologia de Tillich à luz da Semiótica de Peirce). Hans Küng diz que apenas Edward Schillebeeckx o fez. Bonhoeffer disse que o faria - mataram-no. Nós, brasileiros, quem? O século XIX para nós é alguma coisa entre o século do diabo ou dos "ingênuos" crítico-materialistas... De lá sacamos a reação e o ácido sulfúrico da corrosão dos fatos... Ou seja: o que nos interessa. Bonhoeffer, não - ele bebe a losna e o fel. Deus do céu, ele vê, ele diz - e agora? E isso quando está a um ano da morte... Ele viu que havia mais coisa morta do que apenas seu corpo, às vésperas dela...

9. Não sei o que sairia de sua Teologia. Ficou a enigmática fórmula, inacabada, não explicitada: "cristianismo a-religioso num mundo tornado adulto". Talvez Vattimo pense seguir por aí - ao preço de dissolver a realidade com seu frasquinho alquímico de ácido sulfúrico, convertendo tudo em "interpretação" - que é tudo, menos levar a sério o XIX. Estremece-me o espírito em pensar no enfrentamento da tarefa, talvez inimaginável para a Baixada Fluminense. Todavia, é o cheiro da pulsão de morte que me move. Alguém tem de terminar a tarefa, e não na forma das negociações que empreenderam Tillich, Bultamann e os demais teólogos - como manter o mesmo, no novo... Não, é como o velho se faz nesse novo, se faz e se refaz, se desfaz, se transfaz.

10. Para mim, uma Teologia no MEC só pode ser pós-bonhoefferiana. Uma Teologia no MEC, a meu ver, tem de voltar àquela cela, recolher as anotações, e pôr-se em marcha, tendo diante de si um mundo adulto, não uma platéia hipnotizada pelo mito. É com o contra-Olimpo, o contra-Seir/Sinai, o contra-Gólgota, que a Teologia, no MEC vai dialogar. Sentar no chão, não nas nuvens. Varar os tímpanos com gravetos de árvores, para não mais ouvir cânticos de anjos - nem de diabos. Diabos - bastem-nos aqueles do século XIX...

11. Alguém vai encarar? Se não, sai da frente, que lá vou eu...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio