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domingo, 14 de fevereiro de 2010

(2010/137) De Bíblias e de tribos engajadas


1. Bíblia de um lado, "povo" e "comunidade" de outro, lá se vai a grande correição dos (possíveis?) auto-enganos. Há quem insista em afirmar - em solene tom de "acusação" - que o "trabalho" com a Bíblia é mais recomendável que a pesquisa "morta" e "fria": mutirões, assessorias, grupos de estudo, "encontros", "oficinas" - o modus operandi é grande. "A exegese da PUC é fria e morta", alega-se: "é preciso gerar vida com os estudos bíblicos"...

2. Bem, em primeiro lugar, deixem-me deixar claro que não se trata, aqui, de uma "defesa da exegese da PUC". Quando se fala desse jeito, é de algumas pessoas da PUC que se está falando, quero dizer, não é à PUC que se faz referência, diretamente, mas é tiro indireto, mas com destino que se sabe reconhecido... Exegese morta e fria? Sei de quem se está falando...

3. Não quero levar muito longe esse desabafo. Apenas direi o seguinte: não conheço muitas exegeses engajadas "exegeticamente" sustentáveis. Há, sim, evidentemente, aqui e ali, tentativas de se criar "vida" com um mínimo de honestidade acadêmica. São momentos, parece, em que um senso de "missão" se faz em face do espelho... Mas, diferentemente dessas exceções raras e apreciáveis, na maioria dos casos a Bíblia é manipulada grosseira e alegoricamente, e, como a "comunidade", vítima, entende tanto de exegese quanto eu de culinária, faz-se de conta que a Bíblia ali tem algo a dizer, quando, a rigor, quem o diz são os ventres - eventualmente, bem-intencionados... Onde a Bíblia é maniplada, pessoas igualmente o são. Para o bem? E existe esse conceito?

4. Há casos de "engajamento bíblico" de caráter evangelical - "missão integral". Há casos de engajamento bíblico de caráter prioritariamente puritano-confessional - "fundamentalismo". Há casos de engajamento bíblico "libertador" - alegoria latino-americana. Cada um tem direito de fazer o que queira, mas que o conjunto se constitui como manipulação "branca", seja, de um lado, da Escritura, seja, de outro, da própria comunidade - não me vejo em condições de negar. Onde quer que adultos sejam tratados como crianças - e usar a Bíblia com quem não sabe interpretá-la não me parece decente - instala-se a disfunção política: os adjetivos que se auto-atribuem são bonitos, mas a verdade é que, na prática, se trata de manipulação. No fundo, cópia daquela classe de catecúmenos de oitenta e quatro...

5. Não estou dizendo que não se faça. Eu não sei nada sobre a vida - muito menos sobre as pessoas. Vai ver as pessoas são mesmo bonecos de manipular, com amor e tudo, com o furor do Espírito no ventre de catequistas, missionários integrais, fundamentalistas e libertadores... Se se dizem tão movidos pelo Espírito, como vou eu negar, eu, que nada sei desses movimentos intestinos? Vai ver os escolhidos são mesmo um povo especial, que o Espírito usa para iluminar os ignaros... Vai ver... Como não sei nada sobre isso, e como me constrange dizer a pobres e humildes aquilo que "a Bíblia diz" para eles fazerem, não posso me dar ao luxo de engajar-me. Minha consciência não me permitiria mais esse pecado.

6. Para mim, só resta um caminho que contemple, ao mesmo tempo, Bíblia e comunidade: educação - ensinar o povo a ler, e ler criticamente. Qualquer técnica de dar interpretações prontas, mesmo as da Teologia da Libertação, tão na moda para quem gosta de criticar a pesquisa, é, a meu ver, reprovável. E mais ainda, quando, diante da pesquisa, porta-se como modelar. Presunção - self-deception... Há um poço sem fundo diante dos olhos de quem ousa admitir que tem nas mãos a sabedoria de dizer aos outros o que fazer - e, ainda mais, com ornamentos divinos na voz. Parece subir certo cheiro desse poço... Mercadoria, diria Menocchio, mercadoria... A alma sacerdotal é camaleão... Cínica, deveria admitir-se aristocrata, teocrata, clerical...

7. Se eu conheço trabalhos de educação bíblica? Não - conheço trabalhos "engajados". Neles, a Bíblia é, meramente, "instrumento". Em termos operacionais, alguma diferença entre as bibliopraxis engajadas? A "vida" está na visão de mundo do catequista, ele faz que a retira da Bíblia, faz crer nela a "comunidade" - ah, palavra cínica! - e dá por cumprida a "missão" - outra palavra-deboche.

8. Há alguma lucidez por aí. Não é posível passar pelo século XX sem a crítica à "objetividade" das interpretações. Daí o "bloco" hermenêutico-lingüístico da pós-modernidade engajada - já que não há objetividade, a vida está, mesmo, na "interpretação"... Mas, reparem, companheiros, que a Bíblia, objeto pré-moderno, permanece debaixo do braço - elemento objetivo da hipnose do bem... Deus paupável...

9. Já disse: deixem-me quieto com minhas pesquisas. Não saio a campo para azucrinar a vida de quem está a deliciar-se com a sensação divina de cumprir sua missão divina. Mas, por favor, não procurem modos de fazer chegar aos meus ouvidos frios e mortos as críticas vivas e sagradas à minha fria e morta morte crítica. Uns com carne, outros com celulose - cada qual pastoreando seu rebanho... Ou, como dizia minha avó, cada macaco no seu galho... cada ovelha no seu redil...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

segunda-feira, 2 de março de 2009

(2009/046) De uma diferença fundamental


1. Não é de hoje que o ser humano "pensa". Tão antiga quanto essa faculdade é a capacidade humana de se enganar nesse e por meio desse pensamento. Não foram poucas as vezes em que alguém julgava, com toda a sinceridade do mundo, estar "certo" em seu modo de pensar e quanto ao pensamento assim gerado, e, contudo, revelou-se a mais das equivocadas posições. Às vezes, é-se confrontado ainda em vida. Outras, morre-se, cuidando-se ter-se construído uma muralha, e, amanhã, fu!, o vento sopra, e ela cai. Imagine-se a situação de Gilgamesh, que conmsiderava a forma de imortalidade possível a construção das muralhas de Eridu!...

2. Não há, hoje, o mesmo risco? Que garantias temos, nós, hoje, de estarmos certos? Com que pretensa garantia posso eu, por exemplo, escrever um post para cada parágrafo do post de Jimmy, e refutá-lo com tanta aparente autoridade?

3. É, sempre, temerário. Muito. Sempre. Podem-se cometer erros, seja de leitura, de interpretação, de julgamento. Pode-se ser cegado pela própria posição relativa, como, por exemplo, quando se deixa esconder alguma coisa por um tronco de árvore, nesse caso, esconde-se uma informação, um dado, uma perspectiva, ocultados atrás de uma ideologia que cega. É um risco. Enorme risco.

4. Isso faz com que haja uma vantagem comparativa, nesse aspecto, nos modelos epistemológicos modernos - críticos - em relação aos modelos de estrutura epistemológica platônica. A rigor, a história da epistemologia demonstra, de forma bastante "clara", que tem havido uma constante e aprofundada transposição de modelos focados em "conteúdo" para modelos focados em "método". Essa é, de longe, mas de muito longe, a maior distância, incomensurável, entre os modelos de índole platônica - dogmatismo, doutrina, intuição mística, tradição - e os modelos de índole iconoclasta - crítica, história, fenomenologia.

5. Essa transposição de foco - do conteúdo, das proprosições materiais, para o método, para as proposições formais - implica, por conseguinte, numa melhora de performance da auto-crítica. Ora, isso é óbvio: nos termos de um modelo centrado em conteúdo, como o ponto de partida é o conteúdo, qualquer um pode certificar-se da validade do resultado, bastando para isso checar se o resultado é igual à partida. É? Está certo. Não é? Está errado. Sim, é um vício, mas, enquanto o método não é questionado, funciona formidavelmente bem, de modo que a sensação de "certeza" é naturalmente reforçada pelo caráter circular do critério de verificação. E o poder sabe haurir dessa cratera até a última gota de vinho...

6. Já os modelos centrados em método perdem, e muito, o nível de "certificação" de suas proposições, porque, a rigor, a maioria delas não poderá, facilmente, ser "certificada" - pelo menos não positivamente, conquanto o estado negativo de uma assertiva possa ser, sempre (e se não o pode, essa assertiva não é, convencionou-se, científico-metodológica), demonstrada. O foco no método deixa mais claros os processos cognitivos, as operações de raciocínio, as premissas, e, como não se espera a anuência passiva do interlocutor, mas a (sua) crítica ininterrupta, esse não é, nunca, "adversário", mas colaborador, co-crítico - dentro do jogo, naturalmente. Destarte, a síndrome da "certeza", ainda possível, torna-se menos acachapante.

7. Isso faz do diálogo um instrumento fundamental da crítica. Eu, só, perco, e muito, as condições de operação do modelo, porque preciso da crítica de interlocutores, o quais, eventualmente, relativamente a mim melhor situados em face do problema, terão melhores condições de esclarecer meu possível equívoco de visada. Uma vez que não é o conteúdo que está em jogo, ele é não irrelevante, mas não é crítico - o "resultado" é, a rigor, uma aventura -, a suspensão ou a superação, por meio da crítica, de resultados provisórios não constitui "perda", mas, antes, parte positiva e relevante do próprio processo.

8. Naturalmente que é necessária uma modificação no perfil psicológico do/a pesquisador(a), no caso de ter nascido e crescido sob a influência de modelos baseados em conteúdo. Uma atitude como a de Dostoiévski, por exemplo, que julga a presente situação da sociedade por meio da consideração negativa dos postulados de conteúdo da tradição só pode operar no regime dos modelos de conteúdo. Se a premissa "oculta" é a de que é Deus quem dá as garantias de ordem social, de moral, de ética, de valor etc., com a superação social da "tese" operacional/instrumental "Deus", só se pode concluir pela supressão de todos os limites e valores - "tudo é permitido". Ora, mas isso é apenas a ilusão gerada pela aplicação de um modelo epistemológico a uma situação que já o superou, conquanto a mente nostálgica (e noologicamente provinciana e restrita) do operador considere-se, eternamente, vinculado àquele conteúdo que a caracterizava, mas que, dada a sua superação, perdeu toda a sua substância. Mas não para a mente do operador, é certo. É impressionante como, a despeito da grande capacidade de a espécie, como um todo, adaptar-se aos mais diferentes contextos ecológicos, alguns máximos exemplares dela, freqüentemente, caracterizem-se por um reduzido poder de adaptação ecológica/noológica.

9. É preciso vencer a barreira dos modelos epistemológicos baseados em conteúdo. São as rotinas de pensamento, as rotinas de construção de teorias, a sua base epistemológica, a sua "formalidade", são esses elementos que têm de assumir a função crítica das pesquisas. É por isso que os discursos do tipo levinasiano e buberiano podem até "agradar" a intelectos ainda nostalgicamente (e provincianamente) envolvidos com rotinas de reflexão "clássicas", cripto-metafísicas (em sentido mitológico "tradicional, isto é, "religioso") mas não se sustentam - é fato! - na arena da epistemologia crítica - não de todo, é verdade, e como se daria tal fenômeno?, despojada de mitos.

10. A crítica - é a ela que deve a modernidade sua condição de modernidade. Boa ou ruim, é o que ela é. Quando se postulam, como tese e "proposta", a pós-modernidade, arrepiam-me os cabelos da nuca, como quem pressente a invasão dos espaços por assombrações nunca suficientemente mortas - a suspensão cínica da crítica, com o que, ganham os conteúdos da tradição. E seus gestores, naturalmente.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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