segunda-feira, 2 de março de 2009

(2009/046) De uma diferença fundamental


1. Não é de hoje que o ser humano "pensa". Tão antiga quanto essa faculdade é a capacidade humana de se enganar nesse e por meio desse pensamento. Não foram poucas as vezes em que alguém julgava, com toda a sinceridade do mundo, estar "certo" em seu modo de pensar e quanto ao pensamento assim gerado, e, contudo, revelou-se a mais das equivocadas posições. Às vezes, é-se confrontado ainda em vida. Outras, morre-se, cuidando-se ter-se construído uma muralha, e, amanhã, fu!, o vento sopra, e ela cai. Imagine-se a situação de Gilgamesh, que conmsiderava a forma de imortalidade possível a construção das muralhas de Eridu!...

2. Não há, hoje, o mesmo risco? Que garantias temos, nós, hoje, de estarmos certos? Com que pretensa garantia posso eu, por exemplo, escrever um post para cada parágrafo do post de Jimmy, e refutá-lo com tanta aparente autoridade?

3. É, sempre, temerário. Muito. Sempre. Podem-se cometer erros, seja de leitura, de interpretação, de julgamento. Pode-se ser cegado pela própria posição relativa, como, por exemplo, quando se deixa esconder alguma coisa por um tronco de árvore, nesse caso, esconde-se uma informação, um dado, uma perspectiva, ocultados atrás de uma ideologia que cega. É um risco. Enorme risco.

4. Isso faz com que haja uma vantagem comparativa, nesse aspecto, nos modelos epistemológicos modernos - críticos - em relação aos modelos de estrutura epistemológica platônica. A rigor, a história da epistemologia demonstra, de forma bastante "clara", que tem havido uma constante e aprofundada transposição de modelos focados em "conteúdo" para modelos focados em "método". Essa é, de longe, mas de muito longe, a maior distância, incomensurável, entre os modelos de índole platônica - dogmatismo, doutrina, intuição mística, tradição - e os modelos de índole iconoclasta - crítica, história, fenomenologia.

5. Essa transposição de foco - do conteúdo, das proprosições materiais, para o método, para as proposições formais - implica, por conseguinte, numa melhora de performance da auto-crítica. Ora, isso é óbvio: nos termos de um modelo centrado em conteúdo, como o ponto de partida é o conteúdo, qualquer um pode certificar-se da validade do resultado, bastando para isso checar se o resultado é igual à partida. É? Está certo. Não é? Está errado. Sim, é um vício, mas, enquanto o método não é questionado, funciona formidavelmente bem, de modo que a sensação de "certeza" é naturalmente reforçada pelo caráter circular do critério de verificação. E o poder sabe haurir dessa cratera até a última gota de vinho...

6. Já os modelos centrados em método perdem, e muito, o nível de "certificação" de suas proposições, porque, a rigor, a maioria delas não poderá, facilmente, ser "certificada" - pelo menos não positivamente, conquanto o estado negativo de uma assertiva possa ser, sempre (e se não o pode, essa assertiva não é, convencionou-se, científico-metodológica), demonstrada. O foco no método deixa mais claros os processos cognitivos, as operações de raciocínio, as premissas, e, como não se espera a anuência passiva do interlocutor, mas a (sua) crítica ininterrupta, esse não é, nunca, "adversário", mas colaborador, co-crítico - dentro do jogo, naturalmente. Destarte, a síndrome da "certeza", ainda possível, torna-se menos acachapante.

7. Isso faz do diálogo um instrumento fundamental da crítica. Eu, só, perco, e muito, as condições de operação do modelo, porque preciso da crítica de interlocutores, o quais, eventualmente, relativamente a mim melhor situados em face do problema, terão melhores condições de esclarecer meu possível equívoco de visada. Uma vez que não é o conteúdo que está em jogo, ele é não irrelevante, mas não é crítico - o "resultado" é, a rigor, uma aventura -, a suspensão ou a superação, por meio da crítica, de resultados provisórios não constitui "perda", mas, antes, parte positiva e relevante do próprio processo.

8. Naturalmente que é necessária uma modificação no perfil psicológico do/a pesquisador(a), no caso de ter nascido e crescido sob a influência de modelos baseados em conteúdo. Uma atitude como a de Dostoiévski, por exemplo, que julga a presente situação da sociedade por meio da consideração negativa dos postulados de conteúdo da tradição só pode operar no regime dos modelos de conteúdo. Se a premissa "oculta" é a de que é Deus quem dá as garantias de ordem social, de moral, de ética, de valor etc., com a superação social da "tese" operacional/instrumental "Deus", só se pode concluir pela supressão de todos os limites e valores - "tudo é permitido". Ora, mas isso é apenas a ilusão gerada pela aplicação de um modelo epistemológico a uma situação que já o superou, conquanto a mente nostálgica (e noologicamente provinciana e restrita) do operador considere-se, eternamente, vinculado àquele conteúdo que a caracterizava, mas que, dada a sua superação, perdeu toda a sua substância. Mas não para a mente do operador, é certo. É impressionante como, a despeito da grande capacidade de a espécie, como um todo, adaptar-se aos mais diferentes contextos ecológicos, alguns máximos exemplares dela, freqüentemente, caracterizem-se por um reduzido poder de adaptação ecológica/noológica.

9. É preciso vencer a barreira dos modelos epistemológicos baseados em conteúdo. São as rotinas de pensamento, as rotinas de construção de teorias, a sua base epistemológica, a sua "formalidade", são esses elementos que têm de assumir a função crítica das pesquisas. É por isso que os discursos do tipo levinasiano e buberiano podem até "agradar" a intelectos ainda nostalgicamente (e provincianamente) envolvidos com rotinas de reflexão "clássicas", cripto-metafísicas (em sentido mitológico "tradicional, isto é, "religioso") mas não se sustentam - é fato! - na arena da epistemologia crítica - não de todo, é verdade, e como se daria tal fenômeno?, despojada de mitos.

10. A crítica - é a ela que deve a modernidade sua condição de modernidade. Boa ou ruim, é o que ela é. Quando se postulam, como tese e "proposta", a pós-modernidade, arrepiam-me os cabelos da nuca, como quem pressente a invasão dos espaços por assombrações nunca suficientemente mortas - a suspensão cínica da crítica, com o que, ganham os conteúdos da tradição. E seus gestores, naturalmente.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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