segunda-feira, 2 de março de 2009

(2009/045) De ateus e não-ateus - via Saramago


1. Saramago escreveu em seu Caderno, sob o título "Ateus":

1.1. Enfrentemos os factos. Há anos (muitos já), o famoso teólogo suíço Hans Küng escreveu esta verdade: “As religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros”. Jamais se disse nada tão verdadeiro. Aqui não se nega (seria absurdo pensá-lo) o direito a adoptar cada um a religião que mais lhe apeteça, desde as mais conhecidas às menos frequentadas, a seguir os seus preceitos ou dogmas (quando os haja), nem sequer se questiona o recurso à fé enquanto justificação suprema e, por definição (como por demais sabemos), cerrada ao raciocínio mais elementar. É mesmo possível que a fé remova montanhas, não há informação de que tal tenha acontecido alguma vez, mas isso nada prova, dado que Deus nunca se dispôs a experimentar os seus poderes nesse tipo de operação geológica. O que, sim, sabemos é que as religiões, não só não aproximam os seres humanos, como vivem, elas, em estado de permanente inimizade mútua, apesar de todas as arengas pseudo-ecuménicas que as conveniências de uns e outros considerem proveitosas por ocasionais e passageiras razões de ordem táctica. As coisas são assim desde que o mundo é mundo e não se vê nenhum caminho por onde possam vir a mudar. Salvo a óbvia ideia de que o planeta seria muito mais pacífico se todos fôssemos ateus. Claro que, sendo a natureza humana isto que é, não nos faltariam outros motivos para todos os desacordos possíveis e imagináveis, mas ficaríamos livres dessa ideia infantil e ridícula de crer que o nosso deus é o melhor de quantos deuses andam por aí e de que o paraíso que nos espera é um hotel de cinco estrelas. E mais, creio que reinventaríamos a filosofia".

2. "O planeta seria muito mais pacífico se todos fôssemos ateus". O que uma declaração dessas tem a seu favor em face do status quo que o post descreve é justamente o fato de que, ao contrário do status quo, que demonstra cabalmente a impossibilidade - até agora, histórica - de as religiões conviverem em paz (confesso que não acredito nas estratégias de "diálogo inter-religioso", conquanto desejaria que surtissem efeito...), uma humanaidade, toda, atéia, não se sabe como se comportaria.

3. Bem, um Estado ateu, esse já sabemos que é capaz das mesmas atrocidades que um Estado cristão ou islamita, e, os dois juntos, as mesmas atrocidades que os modernos estados laicos. Estados são o que seus títeres são: e nós, homens e mulheres do mundo, quando temos o poder na mão, gozamos até a última gota o poder de roer os ossos, chupar o tutano e beber o sangue de quem quer que nos passe pela frente. Há Estados que não se metem, mesmo, em brigas, mas não se contará entre eles, naturalmente, Estados fortes.

4. Já, nós, seres humanos, será, mesmo, se uma conversão radical ao ateísmo, nos tornaria pacíficos? Penso que nesse momento, o marxismo de Saramago perdeu um pouco a substância. Porque, a rigor, não é a religião em si, logo, o teísmo, o panteísmo, o animismo, qualquer ismo desses, que constituiria o problema da alienação. As religiões são meramente projeções (Feuerbach) gestadas e geradas pela alienção material da sociedade. Se o argumento de Saramago estivesse correto, significaria que o problema é a religi~çao em si, Deus é o culpado, e, dada a sua mortem tudo estaria resolvido.

5. Mas não é o caso. Tão pouco penso que Saramago leve isso mesmo a sério, orque não passa de uma saída idealista para um problema que é material, sócio-econômico e histórico - em termos marxianos. Logo, ou Saramago somente cogita de uma possível solução material da espécie humana no ateísmo, ou, por um momento, permitiu que uma "idéia" controlasse a redação de seu Caderno.

6. Mas entro em seu registro. Será mesmo o ateísmo uma alternativa ao teísmo e seus congêneres? A maturidade epistemológica - o ceticismo heurístico e a liberdade de uma mística de imaginação, "leve", "fraca", não ontológica, criativa e pessoal - não constituiria uma solução melhor? Porque tanto o ateísmo quanto o teísmo são idéias muito fortes, ontológicas, ao passo que o ceticismo lida compleximente com a situação histórica da espécie: a) ela tem o "dado" noológico, a idéia, de Deus; b) ela tem a informação heurística de que essa idéia é projeção e invenção sua; c) ela tem a experiência de uma mística, já traduzida em cultura, em olhar, até. Logo, se, de um lado, ela afirma Deus, mente para si, se o nega, mente para si, e, nos dois casos, a mentira para si é um recalque patológico.

7. Saida? Falar toda a verdade: que Deus é projeção, mas que, se precisamos da projeção, que ela seja como que um amigo imaginário, desses que as crianças têm. Um Saramago, que consiga viver sem uma, bom. Um outro, que não, que forje a sua, e que viva ludicamente com ela, eventualmente, levando-a para concentrações comunitárias. Assim, se consultado sob registro heurístico, essa pessoa responderia que desde o século XIX que sabemos que não podemos saber nada quanto a um eventual estado de coisas sobre-natural. E essa dado é inexorável. Se consultada essa pessoa sob o registro estético, ela há de mostrar deu amigo imaginário, falar dele, descrevê-lo, seus gostos, eventualmente até a roupa que usa, e tanto ela, essa pessoa, quanto o entrevistador, saberão que falam de um ser imaginário, eficiente como todos os seres imagínários. Se, ainda, consultado sob o registro político, essa pessoa há de dizer que, na ágora, ali, na praça, onde as relações humanas se dão, é na nudez do diálogo, a despeito dos mitos, que as negociações se desenvolvem, e, nelas, nenhum "deus" se há de intrometer.

8. Consigo imaginar uma sociedade assim. Seria mais difícil imaginar uma em que os símbolos religiosos devem ser respeitados, e a religião majoritária, a cristã, emporcalha, defenestra e demoniza rivais, todos os dias, na TV - e, no entanto, ela não está aí? E nbão está aí, porque, no fundo, nisso, Saramago tem toda a razão?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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