domingo, 1 de março de 2009

(2009/030) Racionalismo blasé e experiência religiosa: a razão cega diante do intratável

1. A teologia clássica – tão somente retórica politica? – não teve e não tem o fôlego suficiente para conter as enchentes emancipadas que dilaceraram os diques de todas as antigas e novas catedrais. No estremecer dos vitrais, caíram todos os mitos programáticos capazes de legitimar a ordenação de um mundo que se percebeu despedaçado. Muito já foi dito - nesse nosso areópago blasé – acerca da tempestade furiosa que varreu todos os deuses da cidade dos homens, marcando o tom de um discurso que não faz nenhuma concessão a uma episteme platônico-agostiniana e a seus sérios desdobramentos políticos e eclesiásticos, que, em terras tupiniquins – para situarmo-nos – forjou caricaturas teológicas, como as que podem ser vistas nas penas austeras e risíveis dos donos do Mackenzie (cf. aqui) , ou mesmo nas alucinações do mais novo e competente interlocutor de Roma, Clodovis Boff (cf. aqui).

2. É mesmo de causar urticária – ou surda indiferença – as eficientes marteladas dos meus dois competentes amigos. Enveredaram eles pelo que chamam de “teologia crítica”. São filhos de uma Europa secularizada – que atingiu nossos tristes trópicos meio que de raspão – e bebem avidamente nas bases de um humanismo renascentista que descobriu o clássico e buscou re-fazer sobre outro topos – o homem como medida dele mesmo – essa tão decadente civilização ocidental. São filhos – bastardos? – de um antroponomismo que desde o renascimento buscou refazer-se sob um novo paradigma, embalado por uma dúvida que irrompe sem pedir licença, essa religião de Rabelais, esse giro que nos deixa solitários e sonambúlicos diante de um universo que se cala. Em duas palavrinhas: são indivíduos emancipados. Seus martelos foram diamantados pela desenfreada avidez crítica do XIX. Marx, Freud, Nietzsche, Feuerbach e Darwin são seus cavaleiros interlocutores. Não há mais lugar para se andar de calças curtas, como mesmo disse Osvaldo – destemido Aufklärung –, depois desses cavaleiros, não há mais como manter-se dentro desse horizonte ontológico-metafísico sem a pena de ser vitima de uma self-deception.

3. Nosso intempestivo Aufklärung, Osvaldo, sem fazer concessões, embriaga-se com as salivas de sangue cuspidas pelos seus heróis do XIX, que o contagiaram infinitamente, moldando a auto-imagem emancipada que ele tem de si mesmo. A partir disso, pensa, escreve e elabora seus enunciados. É um racionalista da tradição de Kant. Refugia-se na imanência de um racionalismo crítico ocidental que colocou chumbo no céu e apagou todos os sóis, podendo responder tão somente com a aridez de um homem solitário, as desesperadas perguntas acerca do que podemos saber? Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar? Neste horizonte epistemológico quer pensar a religião. Assim o faz. Pensa no horizonte da imanência – não há outro modo, diz-se cético. Em belíssimo parágrafo de interlocução entre meus amigos blogueiros temos tal sentença:

4. "Haroldo, meu bom amigo - é dessa lucidez que falo. Tem-se de levar verdadeiramente a sério a Crítica da Razão Pura: nada, absolutamente nada "sabemos" sobre o que houve, há e haverá para além da matéria. Manter, afetivamente, voluntariosamente, um "Tu" supostamente incontaminado por essa condição de chumbo é, ainda, auto-engano, superado somente pela consciência inegociável de que a sua manutenção pode ser tomada na condição de mito consciente, de imaginação afetivo-volitiva, com a condição de jamais ser usado como argumento para qualquer coisa além de nossos devaneios subjetivos em busca de paz interior".

5. Meu bom amigo é um cético. Mas não muito. O bom ceticismo é irônico e trágico. Explico-me. Após enveredar-se pelos caminhos tortuosos do XIX e desatrelar o seu mundo do sol, precipitando-se em vertiginosa contingência, para trás, para os lados, para frente, em todas as direções, vagueando num nada interminável, respirando o bafejo dos espaços vazios, dá um passo pra trás e acorrenta-se numa tradição que se firma na auto-imagem racionalista do seu Cogito, ergo sum. Reproduz em suas falas um neo-kantismo à la Karl Otto Apel – acredita mesmo que a razão pode vencer a contingência, mesmo que seja com o porrete de um Estado –, e nesse horizonte epistemológico, trata a religião. De uma lucidez cortante, seus escritos – heuristicamente fundamentados – revelam certo ar blasé diante das questões existenciais. Foi Camus quem disse que o que “distingue a sensibilidade moderna da sensibilidade clássica é que esta se alimenta de problemas morais e aquelas de problemas metafísicos” [1]. Meu amigo não é um pensador clássico – como assim querelas metafísicas? – e nem mesmo tem um trato existencial com as questões morais.

6. Assim, o horizonte epistemológico da abordagem do fenômeno religioso está dado. Mito e alienação, um psico-socio-diagnóstico de uma racionalidade que busca falar sobre algo, minimamente, intratável. Confesso – não sei se devo fazê-lo ainda –, a saída é tão fácil quanto a da ortodoxia teológica. É só decorar a cartilha de crítica religiosa de um Feuerbach e de um Marx que a sala ficará arrumada – debaixo do tapete colocamos o intratável. Mas alto lá. Não leio nessa observação uma tentativa de retorno ao universo pré-crítico da teologia, já o disse. Os pilares do romantismo ai estão: “A teologia clássica não teve e não tem o fôlego suficiente para conter as enchentes emancipadas que dilaceraram os diques de todas as antigas e novas catedrais. No estremecer dos vitrais, caíram todos os mitos programáticos capazes de legitimar a ordenação de um mundo que se percebeu despedaçado”. Os cavaleiros do XIX foram avassaladores, como avassaladora é a pena dos meus amigos blogueiros. Competentes (des)construtores de dogmas, filólogo(s) da mais alta estirpe (lêem como ninguém a tradição), continuam a grande tradição muito bem sintetizada pelo racionalista kantiano, filósofo e historiador da religião Ernest Troeltsch.

7. A abordagem psico-social da religião – Marx, Freud, Nietzsche, Feuerbach –, fundada numa hermenêutica crítica da suspeita foi o que aconteceu de mais revolucionário e iconoclasta na historia religiosa do Ocidente. Suas críticas desconstruíram todo edifício teológico-politíco e junto dele – pra citar nosso impetuoso Osvaldo – “toda a parafernália verborrágica da Teologia como dogma medieval, metafísico-ontológico”. No entanto, queridos amigos e companheiros blogueiros, a Aufklärung, romântica, heurística, com sua – unilateral? – abordagem psico-social – mito e alienação? – do fenômeno religioso e da existência, corre o risco de cair num círculo vicioso, numa circularidade hermenêutica de uma razão crítica que não consegue nem de longe alcançar o topos da experiência religiosa. Neste horizonte, “en passant”, posso lembrar Rudolph Otto e sua crítica a esse processo de redução historicista na abordagem do fenômeno religioso – somente vícios da mística alemã?

8. Há algo que me impede de permanecer (tão somente) nessa circularidade heurística. Não sei bem como traduzir – os filósofos judaicos chamam de pathos. Em nossa tradição filosófica se aproxima muito dos gritos da filosofia existencial. Algo que não se conforma com essa circularidade hermenêutica da razão. Para lembrar o “medieval” Tillich: esse “essencialismo racionalista”, filho primogênito do “historicismo”. O teólogo “medieval” confessou que considerava Troeltsch “um dos seus mestres”, mas “o existencialismo, recém nascido” começou a levá-lo “para longe de Troeltsch”. Estamos nos aproximando daquilo que chamaram no existencialismo de “absurdo”. É bom frisar que esse niilismo do “absurdo” não é uma roda inventada por espíritos atormentados diante da queda no abismo da estrutura platônico-agostiniana que Nietzsche fez questão de jogar a ultima pá de terra. São espíritos sensíveis que sofrem pela crescente consciência de uma existência inviável – tratarei disso em outro post. Não é a existência em si que é inviável. É a consciência da forma em que se organiza essa existência. É o jogo. Sensibilidade que não permite a racionalização do absurdo, esse darwinismo calvinista secularizado. Nietzsche foi mesmo um homem de força. Assumiu o trágico. E o que considero mais trágico, assumindo-o, não o considerou absurdo. O “tudo é permitido” da cidade dos homens com o céu de chumbo que causou vertigem e agonia moral em um Dostoiévski, foi recebido com gratidão, assombro e expectativa, por um coração Nietzscheano, que afirmando as boas novas, proclamou que o nosso mar está aberto novamente. Foi um aristocrata sem esses ultrapassados pruridos morais cristianizados. O “tudo é permitido” de Dostoiévski poderia ter como resposta de Nietzsche um “tudo está bem”.

9. Há algo aqui que acho digno de atenção: a sensibilidade ao trágico que está no interior da experiência religiosa. Por isso gosto de filósofos judeus como Levinás, Osvaldo. Não pelo conteúdo – monoteísta – de sua saída religiosa, mas por sua sensibilidade ética – no próximo post falarei sobre esse judeu lituano. Há nessa sensibilidade o mesmo espírito de revolta presente em autores existencialistas como Camus. Uma negação da racionalização do niilismo. Digo deles o mesmo que Camus afirmou sobre os heróis de Dostoiévski: esses pensadores se interrogam sobre o sentido da vida: não receiam o ridículo. Nietszche, imbuído de seu espírito aristocrático, não fez – ao menos para mim – a pergunta religiosa fundamental: porque não há na pervesidade da natureza – repito, não há – fundamento ético que impeça a destruição dos mais fracos pelos mais fortes. O problema não é a natureza, eu sei. É a minha consciência.

10. Interrogo-me sobre a consciência dos profetas – monoteístas, monolátricos, politeístas, pouco importa. Pergunto-me sobre sua consciência religiosa. O pathos divino. Haroldo escreveu belíssimo texto, que não encontro em minha biblioteca: Á ética nos profetas bíblicos. Esse mistério que move as entranhas humanas e questiona a ordem natural, esse sentimento religioso, mysterium tremendum et fascinorum, lembrando o já citado Rudolph Otto. Sentimento que não se instala apenas na tradição profética judaica, portanto, não dependente apenas das construções monoteístas que são próprias de um judaísmo tardio. Essa consciência que dilacera e aniquila o ser, ruptura da circularidade do ego, essa dinâmica repetitiva de amor próprio. Desordem da physis, “conseqüente da apreensão do transcendente que inviabiliza o funcionamento humano no registro natural: a gravidade do inefável toma de assalto o nous”. [2]

11. “Como se o intempestivo viesse desordenar as concordâncias da representação. Como se uma estranha fraqueza fizesse estremecer e abalasse a presença ou o ser em ato. Passividade mais passiva que a passividade conjunta do ato, a qual aspira ainda pelo ato, com todas as suas potencias. Inversão da síntese em paciência, e do discurso em voz de sutil silêncio a fazer sinal a outrem – ao próximo, isto é, ao não englobável. Fraqueza sem pusilanimidade como o inflamar-se de uma piedade. Descarga do ser que se desprende. As lagrimas talvez sejam isto. Desfalecimento do ser que tomba em humanidade, fato este que não foi julgado digno de consideração pelos filósofos”[3].

12. Experiência da ordem do transcendente, intratável pela abordagem cega das ciências humanas, naufrágio essencial da natureza diante de uma ruptura que rasga a ordem imanente, o phatos [4]. Termino com Abraham Ioshua Heschel, no seu The Prophets, onde critica a redução da abordagem psicológica do fenômeno religioso.

13. O erro na abordagem psicológica tem ocorrido no seu pré-julgamento; ela tem negado a priori aquilo que supostamente exploraria. Portanto, ao invés de elucidar a experiência profética, ela tem tentado dissolvela através de sua explicação. Consistente com sua visão da vida interior como uma continuidade ou como processo, ela tem tentado olhar a inspiração profética como uma continuidade de um processo que começou na imaginação e no subconsciente.

[1] Camus, A. O mito de Sísifo, p.99.
[2] Pondé, L. O método de Deus. In. Teixeira, F. No limiar do mistério. p. 202.
[3] Levinás, E. Humanismo de outro homem, p.15
[4] Pondé, L. p.184


JIMMY SUDARIO CABRAL

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