1. A frase acima pode ser aplicada em inúmeros sentidos. Nessa postagem, penso naquela preocupação que se iniciou desde que o Cristianismo passou a ser sistematicamente enfrentado contra sua pretensão de gestor do mundo (pensemos em Descartes, inicialmente), até o momento em que, eu diria, felizmente, a sociedade Ociental "emancipou-se" (ao menos policitamente - o que já é um grande avanço) do controle político-jurídico das Igrejas. Estou falando das Repúblicas Modernas e do Estado Democrático de Direito, naturalmente.
2. Ora, o fato de a Teologia ter sido, por quase dois mil anos, a gestora jurídica do mundo, resultou na presunção de que havia "fundamento" líquido e certo para as expressões humanas, quaisquer que fossem - a saber: o fundamento estava, por sua vez, assentado sob a Ordem e a Verdade. Divinas, ambas. Teocráticas, em tese. Autocráticas, na prática. Heterônomas, sempre.
3. Bem, sabemos que essa presunção/pretensão acabou. Ela até deseja retornar - uma leva de des-historicizados protestantes/evangélicos, tendo aprendido a pensar com cabeças medievais, não acredito que se tenham desinteressado da utopia instalada de uma "teocracia" - mesmo nos fronts de esquerda. Contudo, até o momento, trata-se de viver numa sociedade laica e secularizada, e de expressar-se, eventualmente, a mística particular em regime comunitário facultativo e plural. Isso, sim, nos caberia.
4. O problema é que, com a suspensão do fundamento ontológico-teológico de que se servia o homem ocidental, como estabelecer uma base segura para aquelas expressões humanas, até então alicerçadas naquela plataforma?
5. Não é por acaso que a análise dessas expressões teleológicas, intencionais, humanas, cabe, num extremo, em Artistóteles e, no outro, em Kant. Ambos estão interessados em perguntar pelo conjunto hiperônimo das práticas humanas, e chegam, ambos, aos verbos-rubricas "querer", "sentir" e "saber".
6. De imediato, não há "fundamento" para o sentir. Há plataformas a partir das quais ele, o verbo, ela, a estética, ela a "afetividade valorativa", se desdobra. Isso significa que "gostar de" é uma questão cultural. Aí cabem a mística, a arte, o gosto, a afeição. Tudo quanto gravita em torno do sentir não apenas é absolutamente subjetivo, mas, ao mesmo tempo, cultural, filho do tempo, filho do lugar, filho da terra, filho da carne.
7. Quanto ao verbo "querer", isto é, quanto à volição, à vontade, e por extensão, quanto à "política", não há fundamento "ontológico" para isso. Trata-se, nesse caso, da expressão sócio-política de uma pulsão biológica - a "vontade de poder" expressando a pulsão tronco-cerebral da manutenção da vida - a violência (predação e defesa) e a sexualidade. Nos humanos, tal pulsão entra em diálogo com a consciência, a possibilidade de dizer não às próprias pulsões. Isso nos difere, absolutamente, dos demais animais - que igualmente somos.
8. O único fundamento possível para a política é circunstancial e organizacional - ele depende do regime político que, por sua vez, depende das relações sociais. Naturalmente que um regime autocrático há de transformar-se numa cripto-teocracia (porque toda teocracia nada mais é do que um regime autocrático). Seja como for, o "rei", o "papa", o "sacerdote", o "presidente do partido", aí, é o fundamento. Em regimes democráticos, o fundamento é o diálogo construtivo, sobre cuja base elevam-se as leis. Não há chão firme, aí, nada é absolutamente definitivo, certo e acabado. Tudo é frágil. Tudo é circunstancial. Tudo é provisório. Há que se legisferar, há que se legislar, há que se dialogar interminavelmente a respeito do sistema e da sociedade. Não há descanso, aí. Construir, desconstruir, reconstruir. Para sempre.
9. Finalmente, quanto ao "saber", ou, extensivamente, à cognição e, naturalmente, à heurística. Trata-se, aí, sim, de um diálogo com o "real", ou não há "saber". Cada "verbo", a rigor, expressa a relação humana com uma das três grandezas relacionais que o cercam: 1) o homem consigo mesmo: sentir, afeição, estética; 2) o homem com o outro homem: querer, volição, política; 3) o homem com o "mundo" (em sentido ecossistêmico, e não como em João): saber, cognição, heurística.
10. Ora, resulta imediatamente claro e inexorável que, ou o homem é dotado de estrutura cognoscente - e isso em face do real -, ou não se explica a vida, vida essa que é "computação", "cálculo", sensorial do "meio" vital por um sujeito vivo. Ocorre, contudo, que estrutura cognoscente, aí, nada tem a ver com o que se considerava "saber" no regime teológico medieval: uma visada como que "desde Deus" sobre a Verdade. Não, nada disso mais é possível - conquanto os teólogos ainda continuem a expressar-se assim, um crime de lesa-civilização.
11. O regime do "saber" - nos termos da pragmática pós-teológico-jurídica, pós-ontológico-metafísica, pós-sacramental, pós-"cristã" (em termos da gestão do Ocidente) é histórico, é situado, é "sensorial/hermenêutico", é antropológico/lingüístico. Não se pode, de um lado, retornar ao olhar divino, mas não se pode, também não, abandonar o regime sensorial. Certo, além de nos descobrirmos "antropológicos" - e não "teológicos" (a Teologia, já sabemos, é Antropologia - esperneia, contudo, a Velha Dama) -, descobrimo-nos, também, hermenêuticos: mas isso não significa que voltamos à condição fantasmática e ectoplasmática do Homem de Platão. Somos de carbono e mitocôndria, e é nesse contexto que a nossa condição antropológico-hermenûtica deve ser analisada.
12. Pouco, muito pouco tempo, ainda, dedicamos a refletir sobe isso. De um lado, a Teologia ainda brincando - e com fogo! - de conquistar o mundo, ora para si, ora para Deus, como se isso implicasse em alguma diferença! De outro, forças reacionárias de todo tipo, às vezes sem perceber o regime em que operamos a racionalidade pós-medieval, dispersam-se em pós-fundacionalidades no fundo cartesiano-platônicas, a-críticas. É urgente a necessidade de lucidez. Talvez, também, para mim.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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