quarta-feira, 12 de novembro de 2008

(2008/39) Tensão e distensão entre "Teologia" e "Teologia Bíblica"

1. Em 1787, na Universidade de Altdorf, Johann Philipp Gabler (1753-1826) pronunciou a palestra de abertura do ano letivo. Esse pronunciamento é considerado um "marco": "esse ano marcou para a teologia bíblica o início de seu papel de disciplina exclusivamente histórica, totalmente independente da dogmática" (Gerhard F. HASEL, Teologia do Antigo Testamento, JUERP, p. 17). Segundo Hasel, Gabler teria afirmado que:

1.1 "A teologia bíblica possui um caráter histórico: ela transmite o que os escritores sacros pensavam de temas divinos; já a teologia dogmática possui um caráter didático: ela transmite as ponderações filosóficas de determinado teólogo acerca de temas divinos, levando em conta sua capacidade, época e região em que viveu, e orientação ou escola, entre outras coisas" (Idem, p. 17-18).

2. Ainda segundo Hasel, esse pronunciamento de Gabler "rachou" definitivamente a plataforma continental da "teologia", a bíblica e a sistemática, que vinham se engalfinhando desde a Reforma. Uma "placa", avançou reacionariamente, aprofundando seu conservadorismo e ortodoxia por meio de duas ondas, uma, primeira, com apogeu em meados do século XIX, e uma segunda, situada entre o final do século XIX e o início do XX (coincidindo, essa, com Barth, o Vaticano I e o movimento estadunidense The Fundamentals). A outra "placa", crítica e emancipada, tendo de si aquela auto-compreensão "histórica", avançou para transformar-se em História da Religião de Israel. Muita "fraude santa", como a de Josias e Hilquias, foi produzida nesse período - arriscaria dizer que pelas mesmas razões que as daquela vez.

3. O livro de Hasel é muito recomendável. Já dá conta das pressões que havia nas décadas de 60 e 70, adentrando os 80, para o retorno ao que ele chama de uma "nova teologia bíblica", fundamentada em retóricas ao estilo do "canonical approach". Seja como for, a exegese logrou alcançar maturidade acadêmica (jamais livre de pruridos ideológicos assumidos, tanto quanto do risco de ideologias não reconhecidas/conhecidas). Meu falecido professor e orientador, Bouzon, dizia-nos, em sala de aula, que exegese era exegese, e teologia, teologia. A primeira, acadêmica, histórica. A segunda, dogmática, institucional, confessional. Penso que ele, ao dizê-lo, apenas descrevia para nós o quadro em que nós nos víamos enfiados.

4. O Protestantismo criou a crítica moderna. Toda ela. Ajuda lhe adveio de judeus. A rigor, quando Lutero pôs a Bíblia na mão do "povo" - Erasmo o advertiu da loucura que faria! - ele, sem ter a mínima idéia do que fazia, preparou os aríetes com os quais a catedral da Ordem ruiria: a História estava ali, sob cada palavra, como gênio, aguardando, aguardando. Lutero é a nossa Pandora. Que bom!

5. Não significa que todos que lidam com Bíblia, exegese, Teologia Bíblica, aceitaram as implicações da palestra de Gabler. Há toda uma corrente que ainda põe a Bíblia a reboque da Teologia, e, a despeito disso, ainda afirma ser bíblica sua "teologia". É necessário muito malabarismo para o dizer, muita ingenuidade, talvez, muita má fé, quantas vezes. A rigor, sempre, absoluto descompromisso epistemológico.

6. Por sua vez, a ala "teológica" da Teologia, a não-bíblica (o Cristo da Fé não é "bíblico", rigorosamente falando, é nicênico, com todas as implicações daí decorrentes - a chave-hermenêutica "cristológica" alicada às Escrituras é, a rigor, atrelamento da Bíblia à Teologia patrística, apologética, exclusivista, política, coroada em Nicéia. Pode-se fazer isso? Pode-se. Mas deve-se dar a isso o nome que isso tem), permanece inalterada, desde Platão, Paulo, Justino, Ireneu e Tertuliano, Agostinho, Lutero e Calvino, Barth - e, mesmo, Tillich (apesar de que, nesse caso, é preciso muita atenção para o perceber, porque o discurso de Tillich pretende uma base "fenomenológica" que, a rigor, não está lá: não onde deveria estar: no fundamento epistemológico).

7. Será preciso esperar. Terei paciência. Se as coisas caminharem como imagino (se o MEC não voltar atrás), não tardará a que nossos corredores estejam cheios de "teólogos": cristãos, umbandistas (já os temos!), kardecistas, budistas. Penso que essa situação impor-nos-á - ? - no mínimo uma conta de chegada, se não uma conversão interna, ao menos, uma restrição da retórica (será divertido assistir aos debates acerca do "Sagrado", aí). Igual ao que fazemos, hoje, em nossas igrejas. Pudéssemos, calaríamos a boca de muita gente religiosa (de vez em quando uns de nós não se contém, inclusive, um chuta uma "santa", outro, quebra as imagens de um "centro"), faríamos como Josias, a quebrasr altares e ídolos, A.M.D.G. Não o fazemos porque somos melhores que nossos pais, medievais? Não, mas apenas porque o Estado não deixa, ao passo que o Estado, lá, comandava a cruzada. Que seja. Que ao menos o Estado não nos deixe, nas classes de teologia do MEC, mandar ao inferno colegas teólogos. Podemos esquivar-nos da discussão. Mas de enfrentá-la, logo veremos, não.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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