2. Provavelmente ela tornou-se política, isto é, passou a ser controlada por interesses políticos, assim que as comunidadees humanas tornaram mais sofisticados os seus relacionamentos. Mas será com o surgimento das monarquias, das cidades, que a religião se transformará na parceira mais importante da política. O rei logo tornou-se ou representante, ou encarnação, ou imagem, ou filho dos deuses.
3. Com isso, a religião agora domina todos os espaços da cultura: a estética, o belo, as "explicações", a "verdade" - e a política, o dever. Não há, então, nenhum espaço da sociedade, da cidade e do campo, onde lá não esteja o olho e a mão da religião - e, com isso, o olho e mão dos poderes políticos, sejam os puramente sacerdotais, sejam, já, os da coroa.
4. Quanto tempo na longa estrada da História esse foi o quadro encenado, dia e noite? Séculos e séculos se perdem na noite dos tempos. Em que partes do planeta isso se sucedeu? Em todas. Não há expressão religiosa humana, no planeta, que não tenha caído nessa mesma situação. Todos os povos o fizeram. Uns mais, quanto mais organizada e urbana ela fosse, uns menos, mas mesmo as culturas menos sofisticadas, mais "tribais", mais silvícolas, experimentaram a hiperonomia da religião, isto é, a submissão de todas as esferas da vida à esfera religiosa.
5. Até que, no Ocidente, inicia-se um processo de descoalização. Não foi determinante o que aconteceu na Grécia, por volta do século V e IV. Platão está a serviço do mesmo princípio - só há, parece, um certo movimento para o esconder. Aristóteles, talvez, tenha desenvolvido reflexôes mais autonomizantes, quero crer. Seja como for, essa Grécia é o equivalente, para a Reforma, a John Huss - não deu em nada de concreto enquanto acontecia, ainda que seus desdobramentos serão percebidos séculos depois - mas somente séculos e séculos depois.
6. Aristóteles simplesmente "desaparece" no Oriente. No Ocidente, a própria cultura helênica será o estofo para uma civilização teológica inteira - o Ocidente Cristão. Platão é seu parteiro. Paulo, seu pai. E lá se vão mais mil anos, desde aí até aqueles dias em que os árabes introduzirão Aristóteles na Península Ibérica. Mil anos de "morte", dirão os próprios europeus, quando se chamarem, depois deles, de renascentistas. Grécia falhara. Tentemos de novo.
7. É somente aí que um processo realmente transformador se inicia. Desdobrar-se-á, desde a Renascença e o Humanismo, primeiro, na Reforma, depois, no Empirismo, depois, no Iluminismo, na Revolução Francesa, no Romantismo e, voilá, re-inventa-se não uma civilização, mas uma nova forma de configuração da própria condição histórica humana.
8. Depois de uma longa série de fluxos e refluxos relacionados aos processos de emancipação política (Iluminismo e Revolução Francesa) e heurística (Iluminismo, Empirismo e Romantismo), a condição hiperônima da religião perdeu substância. De sob o poder da religião, tirou-se quer a política, quer a heurística. Tornada assunto privado, logo, estético, restou a ela a manutenção esquizofrênica de fingir para si mesma que as coisas continuavam como antes.
9. Na sociedade, inicia-se uma nova forma de existência humana. Para a política, a democracia, as rotinas, sempre ainda muito imperfeitas, de representatividade política, a criação do Estado dividido em três poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário, o estabelecimento dos Direitos Humanos.
10. Ao mesmo tempo, aquele princípio "explicativo", embrionário e mítico, converte-se num impulso programático e metodologicamente discutido de investigação - a heurística (que Aristóteles já pressupusera na forma do "saber", ao lado do querer e do sentir). Surgem as ciências, primeiro as matemáticas, depois, as empíricas, então, as humanas.
11. Estabelecem-se as câmaras pragmáticas, política, estética e heurística. A sociedade se emancipa, se organiza. O que antes constituía a câmara hiperônima de tudo o que se fazia e dizia na cultura, converte-se, agora, em uma das rotinas privadas que a constitui - a religião.
12. Mas a religião não aceita esse jogo, não. A religião quer, para si, aquela velha vida de senhora, rainha e mãe. Intra-muros, age como se nada tivesse acontecido. Intra-muros, é tão política quanto antes - todo "sacerdote" é rei e chefe. A "verdade" é o que ela diz, e pronto. O gozo, ela dita as regras litúrgicas para a sua expressão. Ela, a religião, padece de uma doença - esquizofrenia e extemporaneidade.
13. Na relação com a sociedade, a religião não aprendeu - aprenderá? - a lidar com o que considera uma usurpação de seus poderes. No campo político, mesmo os batistas, tão intimamente relacionados à sepração entre Igreja e Estado, no fundo, consideram que é Deus, logo, seu patrono, o verdadeiro gestor do planeta, seja dentro da Igreja, seja fora dela, de modo que, sendo ela a mais entendida das coisas de Deus, também a política, para ela, é uma coisa religiosa, a democracia, um instrumento de Deus, e os resultados da política, condenáveis, se ferem seus "princípios" divinos, para o que basta nos lembrarmos das questões relacionadas às células-tronco, aos direiros civis de homossexuais e às questões relacionadas ao aborto. Se a religião pudesse, assinava ela mesma as leis que ela entende divinas. Não aprendeu nada até hoje, a velha professora.
14. No campo das ciências, a esquizofreinia chega às raias do intolerável. Os mitos milenares são sacados para o enfrentamento das pesquisas. A EBD entra em batalha contra o laboratório. As crianças, coitadas, não sabem se respondem do jeito que a professora quer, ou do jeito que o pastor quer. Na prática, responde, pra um, de um jeito, pra outro, de outro, aprendendo desde cedo a sutil arte de ser adaptável. Quando não, pais enfiam goela abaixo de seus filhos os mitos que eles, os pais, decidiram ser verdadeiros.
15. No campo da estética, separa-se o belo em sagrado e profano. Veja-se o caso da música, por exemplo. Uma vez que o belo é apenas o que está no âmbito do sagrado, quando o âmbito do sagrado sofre de patologias incuráveis no campo da beleza - pelo amor de Deus, como se canta mal! -, o belo se torna irremediavelmente feio. Pior do que a mais expressiva parcela da música gospel nacional, só a mais expressiva parcela do funk nacional.
16. E tudo porque a religião não é capaz de admitir que o seu tempo de rainha acabou. Resta a ela aquela dimensão original, estética, de, eventualmente, dar sentido à existência efêmera humana. Não é necessário que a religião simplesmente se considere um fóssil, que não é, mas igualmente não é aquilo que imaginara por toda uma História das Civilizações. No sistema ocidental, cabe a ela apenas uma participação significativa na dimensão estética pessoal, mas não mais nem na política (tecnicamente falando), nem na heurística.
17. Tomara a religião ponha a mão na consciência e se converta. Poderia trocar seu papel de alienadora das consciências para um papel de expressividade estética, de agente patológico, em terapêutico. Porque até o que ela chama cura, hoje, constitui, a rigor, uma disfunção psicológica. Todavia, não é algo que um religioso possa fazer sozinho...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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