1. Penso aqui exclusivamente naqueles pregadores cristãos que têm o sincero interesse de expor clara e honestamente a "mensagem bíblica". Deixo de lado a interminável correição dos aproveitadores da mística popular, os quais, por meio do falso recurso à Bíblia - não sabem sequer ler! - arrastam corpos e mentes a uma orgia de criminosa alienação.
2. Partindo do pressuposto de que são, aqueles, ao menos bons leitores - o analfabetismo funcional grassa nas fileiras da homilética cristã brasileira -, que dominam o mínimo necessário a Gramática da Língua Portuguesa, afinal, enquanto "pregadores", esta é sua principal ferramenta de trabalho, deixo conscientemente de lado a questão mais séria - e peco só em fazê-lo - da necessidade de acesso às línguas originais (hebraico, aramaico e grego), advertindo, contudo, que pregador de uma Bíblia traduzida é tão-somente pregador de tradução dos outros - a alternativa seria ser pregador de sua própria tradução. Fora do antigo catolicismo romano (mas não mais o do Vaticano II), a "Palavra de Deus" esbarra e coincide com a tradução do texto bíblico - e não se pode fugir disso. É o caso da Tradição - a Ordem - versus a Subjetividade - o Indivíduo...
3. Ressalvadas essas questões, parto da seguinte afirmação: em um texto bíblico qualquer, seja do Antigo, seja do Novo Testamentos, cada personagem, homem, mulher, rei, sacerdote, profeta, apóstolo, seja quem for, Deus, Jesus, o Espírito Santo, aquele anjo, a mula que fala, o peixe que engole Jonas, a serpente do Jardim, os diabos dos exorcismos, o do pináculo, os amigos de Jó, a mulher de Jó, os serafins de Isaías, os servos do Saul tomado pelo espírito mau de Deus, esse espírito mau de Deus, a necromante, a amada e o amado, de Cantares, o judeu exilado, do Sl 137, o judaíta que tem os cabelos arrancados porque não quer abandonar a esposa moabita, a Rute que se despe aos pés de Boaz, - quer dizer, todos e cada um dos personagens de todas e de cada uma das narrativas bíblicas não têm vida própria. E, quando falo todos, quero dizer todos.
4. Com vida própria quero dizer que, ali, na narrativa, eles e elas, os personagens, homens, espíritos e bichos, independentemente de terem ou não uma vez existido na vida real, ali, na narrativa, não têm vida real - são função retórica do escritor. Eles e elas, os personagens, dirão o que o escritor quer que digam, farão o que o escritor quer que digam, serão o que o escritor quer que sejam.
6. As implicações desse fato são inúmeras, relevantes e incontornáveis. Primeiro, que só há um modo de fugir à onipotência funcional-instrumental do escritor. Assassinando-o. Está claro? Matá-lo é eficiente. Mas, então, o que acontece? Ora, experimente ter nas mãos os fios que sustentam um boneco e, então, largar os fios... Isso! O boneco cai, inerte. Olhe para ele. O boneco, coitado, naquela pose triste do corpo retorcido e sem vida. Como revivê-lo? Quer dizer, como fazer com que ele viva, de novo, sem que seja pela mão do escritor a lhe serem controlados os fios? Só há um jeito - um outro qualquer, você, por exemlo, haverá de tomar os fios com as próprias mãos e fazer o boneco andar como queira, não o boneco, bem sabido, mas o novo e "oculto" manipulador dos fios do boneco-de-fio. O boneco, sozinho, não vive, não anda, não fala. Não pode decidir o que fazer. É sempre preciso um manipulador...
7. Assim, quando um pregador lê um texto, e o expõe, está a fazer das duas uma: ou está descrevendo como o escritor fazia viver, andar e falar seus bonecos-de-fio, ou está, ele mesmo, o pregador, a manipular os fios, e com eles, os bonecos que o escritor um via trouxe à vida.
8. As duas possibilidades são reais. Mas têm implicações diferentes. Se o pregador quer fazer viver os bonecos-de-fio tal qual viviam, andavam e falavam sob o controle do escritor, terá que se submeter, não tem jeito, às regras da exegese histórico-social (histórico-crítica). E jamais terá a segurança inequívoca de que está a fazer viver, andar e falar cada boneco como vivera, andara e falara, quando da primeira vez. Se, por outro lado, o pregador quer tão somente fazer que fale o boneco, sem que esteja, nisso, interessado em ouvir a única voz humana que fala na página onde vivem os marionetes, a do escritor, então o terá por morto, e somente lhe terá restado dar ele mesmo, pregador, viva e andar e fala ao boneco, do seu jeito, segurando ele mesmo os fios deles.
9. Na prática, é o que cada pregador acaba fazendo, seja porque é incompetente para fazer repetir a performance original dos bonecos-de-fio da narrativa, seja porque sua ideologia é de tal modo distante da do escritor, que não pode mais, nem que quisesse, recuperar-lhe os movimentos das mãos.
10. Eis, portanto, a honestidade possível ao pregador. O pregador de primeiro tipo, o que quer repetir a performance teatral do primeiro manipulador dos bonecos, o seu criador, o escritor do texto, deverá, de um lado, pagar o preço exigido pela domínio mínimo o suficiente das línguas originais, das técnicas histórico-críticas indiciárias, dos métodos críticos, e, de outro, contentar-se em, sempre, apresentar apenas uma interpretação possível: talvez, meus amigos, mas só talvez, tenha sido assim que o escritor tenha mexido a mão, aqui, mas não posso garantir...
11. O pregador de segundo tipo, esse pode relaxar. Não precisa sequer de grego e hebraico. É como se ele encontrasse bonecos-de-fio caídos no chão, tomasse os fios nas mãos e os começasse a fazer moverem-se - naturalmente que do jeito que lhe parece adequado. Por outro lado, se quiser ser honesto, se não quiser enganar a platéia que lhe assiste, deverá dizer para todos e para cada um que o som que sai da boca dos bonecos, é ele, ventríloquo, a produzir, que os passos de cada boneco-de-fio é determinado pela sua mão, e que é ele quem faz viver, andar e falar, do seu jeito, cada um dos personagens, que, afinal, homilética é um vento de subjetivas políticas, nesse caso.
12. Eis por que, amigos, interessa-me cada vez menos a pregação... A rigor, se cada protestante é seu próprio sacerdote, cada protestante é seu próprio pregador. E não me venha, Lutero, dizer que Erasmo não lhe avisou!
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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