quarta-feira, 25 de março de 2009

(2009/107) Exegese, Popper e Djavan


1. Por isso gosto do modo como Karl Popper entende o critério da cientificidade de uma declaração. Talvez eu esteja esticando demais o âmbito de aplicação de seu postulado crítico, mas, a rigor, aceito, sem restrições, que a tese de que a verificação crítica dos enunciados, a possibilidade de demonstração em caso de ser inverídica, falsa ou equivocada, constitui um bom critério para as ciências (quanto ao tema da falseabilidade como critério para a crítica de postulados científicos, cf. Karl Popper, Conjecturas e Refutações, bem como [com menos ênfase, já que tenho críticas a fazer ao livro (há um sintoma de "ciumite" teológico-filosófica das ciências em suas páginas...)], Rubem Alves, Filosofia da Ciência - introdução ao jogo e suas regras).

2. Explico-me. Um aluno cantarolava Djavan pelo corredor do térreo da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - FABAT, e eu, de pé, no saguão, como de praxe, não me furtei a uma brincadeira. Ele, então, me faz saber que acabara de descobrir, e, por isso, emocionado, cantarolava-a, que a composição Flor de Liz, de Djavan, referir-se-ia a um trágico sinistro: a morte de sua esposa no parto da filha. O aluno estava muito encantado com a descoberta, mas, a despeito disso, meu cérebro pôs-se a trabalhar e, enquanto mantinha a conversa com o rapaz, de memória, comparava a letra à interpretação. Nada, absolutamente, na letra, no seu todo, permitia aquela interpretação. Só podia estar errada.

3. Despedi-me e corri à sala dos professores. O Oráculo - Google, esse deus onipresente (salvo nos casos de pane!, e já houve algumas) -, quando você sabe fazer as perguntas, sabe dar as mais adequadas respostas. Imediatmamente descobri, no site do próprio Djavan, tratar-se de uma "lenda urbana", circulando pela Internet (cf. em http://www.djavan.com.br/main.php, janela AGENDA, data de 11 de setembro, sem indicativo do ano [2008?]). Sabia!

4. Por que me fora extremamente fácil "antecipar" o juízo de que a interpretação era falsa? Ora, porque ela tem, em si, a principal característica das interpretações superficiais, capengas, sem base nem fundamento: baseia-se não sobre a totalidade do poema, mas sobre uma ou outra palavra, pinçada ideologicamente, e, desde aí, inflacionada sob o regime das polissemias. Assim interpretam-se os livros bíblicos, por exemplo - não é por conta das expressões "Egito" e "meu filho" que Mateus pode servir-se de Os 11,1, para fundamentar aí uma interpretação (sua?, da comunidade?, da tradição?) quanto ao retorno de José e Maria do Egito como evento profético? Sim, mas isso a despeito do conteúdo geral do texto, que é de acusação e condenação desse "filho". Basta um olho, ainda que meio cego, para logo se perceber que Mateus não "lê" Os 11,1, apenas "usa" a polissemia do texto para fazê-lo dizer o que ele, Mateus, quer que ele, o texto, diga.

5. Um pouco de treinamento e a gente "pega" facilmente os erros graves e escandalosos, e, logo, também os sutis, das interpretações correntes - o problema é tornar-se por isso imprestável aos sermões, quaisquer que sejam, porque, como já o disse Nietzsche, o bom teólogo é (necessariamente?) um mau filólogo. Não se trata de magia, de dom, de carisma - trata-se de adestrar a mente a trabalhar com o conjunto do texto, com cada palavra e com todas, ao mesmo tempo, exigindo que o sentido do texto seja sustentado, ao mesmo tempo, tanto pela unidade semântica de cada palavra, quanto pelo conjunto sintático da geografia narrativa. Não é nem difícil. Difícil é perder a mania de escolher, como quem cata feijões, palavras-chave de um texto para, daí, inventar uma interpretação até literariamente criativa, vá lá, mas, sob nenhuma circunstância, "exegética", histórica, e, nesse sentido, "verdadeira" (quer dizer, "plausível").

6. O que isso tem a ver com Popper? Bem, é que a conseqüência do enfoque popperiano para a "verdade" científica (sem dúvida quanto às Ciências Humanas, mas Popper generaliza a sua aplicação) é que a rotina é eficiente apenas sob o regime iconoclasta - se o ídolo é de barro, é fácil destruir e demonstrar que era falso: como fiz com a interpetação de Flor de Liz (basta, como disse Nietzsche, cavar, porque a fonte está embaixo). Todavia, você nunca poderia demonstrar inequivocamente que uma interpretação estaria absolutamente correta, porque, ainda que ela pudesse ser sustentada pelo recurso a cada uma das palavras, individualmente, tanto quanto pelo conjunto de todas elas, sintaticamente articuladas, ainda assim tratar-se-ia de uma hipótese. Sim, ainda que num nível de plausibilidade ótimo, apenas uma hipótese, já que a proposição científica é, em última análise, demonstrável apenas sob seu aspecto negativo - o da eventual falseabilidade da proposição, em sendo, então, falsa.

7. Essa característica do enfoque popperiano, aplicado às Ciências Humanas, torna a "verdade" uma grandeza sempre a um passo de nós, conquanto não permita, em nenhuma circunstância, um relativismo pós-moderno e fantasmático, porque aquilo que destoa da "verdade", ah, é fácil bater-lhe com três pancadas de marreta, e isso vira pó... É como a caspa: você passa a mão no ombro, e ela se vai... Mas esteja atento: sempre caem mais dessas malditas...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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