quinta-feira, 26 de março de 2009

(2009/108) Um sentido na História?


1. Depois de 1787, quando Gabler pronunciou sua palestra que, em termos didáticos, marcaria (pelo menos para Gerhard F. Hasel) o início oficial da Teologia Bíblica do Antigo Testamento (TBAT) como disciplina fundamentalmente histórica, a primeira etapa que se sucedeu foi uma espécie de sucumbimento dessa mesma TBAT às influências de sistemas filosóficos - mormente o de Hegel.

2. Esse sinistro é não apenas curioso, mas irônico. Porque a TBAT havia, desde a Reforma, entrado em rota de colisão, não-programática, mas inevitável, com a Teologia Sistemática (TS). Ora, a TS é justamente um sistema filosófico-teológico. Isso, contudo, não diz o bastante. O sistema filosófico da TS - desde os primórdios do(s) Cristianismo(s) até hoje, com raros ensaios alternativos que nunca se tornaram sequer endêmicos (um existencialismo, em Bultmann, uma pseudo-fenomenologia, em Tillich [não chega nem a uma quase-fenomenologia {algo psicológico, vá lá}]) - é integralmente "platônico".

3. Dizer que o sistema filosófico que sustenta a TS é platônico implica, para o que aqui me interessa, duas coisas: primeiro, que se trata de um sistema idealista e dedutivo, ou seja, partem-se de idéias abstratas, tomadas como normativas (ontologia/metafísica) e aplica-se, doutrinariamente, tais idéias à vida concreta, e, segundo, trata-se de um sistema com direção linear, teleológico, propício (se não lhe fator determinante, posto que anterior a ela) ao desenvolvimento de uma "história da salvação". É que a epistemologia platônica desdobra-se plasticamente na forma de um mito da queda das almas na matéria, o que lhes teria causado uma amnésia humanamente insuperável, mas que a Providência decide superar por meio da rememoração (gnose) das verdades divinas. Eis aí um plano de salvação misturado com uma epistemologia gnoseológica que, somada àquela primeira característica, imprime ao sistema filosófico platônico, logo, à TS, uma sentido linear para a "história", que, nesse caso, teria um "fim" em vista, uma meta - e, nesse caso, uma meta supra-histórica. Seja a Providência, para Platão, seja Deus, para Paulo e Agostinho (conseqüentemente, para toda a Teologia Sistemática (nesse caso, mesmo os ensaios existencialistas e correlacionais), a História não passa de uma peça de teatro, cujos atores encenam uma peça dirigida, com um fim dirigido, porque ela, a História, ela, a peça, tem um enredo pré-estabelecido, ela é tanto História quanto Romance. Penso que o ápice dessa "teologia/filosofia/teleologia" esteja bem representada nos "Cânones de Dort", mas animam a totalidade das teologias cristãs, indistintamente.

4. Quando a Teologia Bíblica do Antigo Testamento rompe com a Teologia Sistemática (basicamente, no século XVIII), não lhe foi suficiente o divórcio para que, incontinenti, aprendesse a pensar não-sistematicamente, isto é, não filosoficamente. É fácil compreender a situação em que os teólogos bíblicos se encontrar(v)am. O resultado de seu trabalho consistia numa seqüência cronologicamente organizada de textos bíblicos, enfileirados desde o último e mais distante século perscrutável (XII?, XI?, X?, IX?, VIII?, VII?) até aquele ali, o século II a.C. A "mente" do teólogo bíblico, contudo, no momento de "organizar" todo esse material, na casa das centenas (milhares?) de perícopes mais ou menos hipoteticamente datadas, não sabia, ainda, pensar (exclusivamente) intra-historicamente. O vício sistemático-filosófico (teleológico) ainda exigia dela que, primeiro, estabelecesse um tabuleiro que impusesse sentido ao conjunto de elementos, que desse uma direção e uma organicidade ao todo. Não podia, contudo, por uma questão de rivalidade, ser, mais, o platônico. Pegou-se o sistema hegeliano...

5. O próprio Hasel o diz. O que aqui estou fazendo, e que Hasel não fez, é dar uma explicação situacional, circunstancial, para o fenômeno. A rivalidade entre os teólogos bíblicos e os teólogos sistemáticos não era suficiente para fazer com que os teólogos bíblicos parassem de raciocinar sistematicamente, porque o único modelo de que dispunham para pensar a história era o modelo teleológico, não necessariamente judaico-cristão, apenas, como se cogita, mas igualmente platônico. Ora, quando Atenas e Jerusalém se juntam, só pode sair daí uma História guiada por um Deus - ainda que, no fundo, a questão seja, a rigor, política, o que significa que ela traduz a situação e a apologia do governo monárquico e/ou sacerdotal daquelas sociedades (para o caso platônico, veja-se A República).

6. Talvez esse fenômeno tenha atrasado um pouco o avanço da crítica bíblica. Talvez até ele tenha favorecido aquilo que, sem equívocos, Hasel chama de "reação conservadora" da teologia sistemática (de 1850 ao início da Primeira Guerra Mundial - e não que pare aí, é que, depois daí, o movimento não reresenta mais reação, mas vitória da ortodoxia). O fato é que não é uma experiência muito agradável a leitura de textos de TBAT influenciados por hegelianismos ou quaisquer outras filosofias teleológicas da história - troca-se, aí, seis por meia dúzia, se a TBAT tem de ser uma discilina histórica.

7. O problema só foi resolvido a partir da metade da primeira parte do século XX, quando a TBAT tornou-se, gradativamente, História da Religião de "Israel". Agora, sim, a TBAT encontra-se consigo mesma. A celeuma que se segue - de que Hasel é agônico participante -, isto é, a pergunta pelo que quer dizer uma teologia que se faz história das religiões é muito mais tributária de uma compreensão platônica da teologia do que um problema da Teologia Bíblica. Ora, são (apenas) os sitemáticos (e, conseqüentemente, a pastoral, porque nada é mais sistemático do que a pastoral, seja de esquerda, seja de direita) que insistem na condição essencial da teologia como "metafísica", "fé", "dogma", "revelação", esses atributos com que a teologia se vestia antes do século XVIII, e antes de a teologia so século XX apagar do (seu!) calendário o século XIX (era o único jeito de ainda brincar de ser séria!). Mas a TBAT sabe-se teológica enquanto ciência humana (tem de aprender o que seja isso!), logo, como disciplina histórica - uma tentativa de verdadeira teologia acadêmica.

8. É que a História compreende-se com uma sistema independente de nada que não seja absolutamente histórico - entenda-se, intra-histórico, para o que não vale a retórica sistemática de um Karl Barth a falar de "revelação na história". A totalidade irretrucável das ocorrências do termo "História" na TS não tem do termo a imagem que a própria História, enquanto ciência, tem de si. A História contempla o que seja humano, e isso em sua relação com a geografia, com a noosfera, ou seja, com o universo humano (mas noológico) das idéias humanas, com a sociedade, com a cultura. Dizer História é, por uma decisão epistemológica, não dizer, necessariamente, sobre-humano (logo, sobre-humano, sobre-natrual, meta-físico). Assim, não há que se poder pensar uma direção supra-histórica para a História, seja da parte de um Deus, de um Demiurgo, de um Diabo, de um Sistema, de um Espírito, de um Super-Homem pseudo-nietzscheano. A direção da História é incerta e aleatória, potencialmente aberta a cada mínimo lance humano (e inemeráveis deles se desenham dia a dia), materializando-se, e, nesse caso, singularizando-se e tornando-se irreversível, a cada segundo. Nada nem ninguém, dentro da História, tem poder de dirigir essa engrenagem, essa nuvem - e se há alguma coisa fora dela que o possa fazer, e até o faça, é sem conhecimento, sem a possibilidade de conhecimento dela que o faz. Logo, a TBAT deixa de fora essa possibilidade, e compreende-se como disciplina intra-histórica, científico-humanista, que só pode olhar para o passado, lamentar ou festejar o presente, e, eventualmente, sonhar com (engajar-se nisso?) um futuro sempre incerto.

9. Porque homens e mulheres, povos, enfim, na História, imaginaram apocalipses de toda sorte, sempre dirigidos por uma Força Sobre-Humana, a TBAT conhece e lida com escatologias - conquanto ela, a própria História, desconhceça o que pode vir a ser isso na vida real.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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