sexta-feira, 26 de novembro de 2010

(2010/587) A máscara que Nietzsche pôs na cara


1. Losurdo está a me dar uma surra tão grande, que volta e meia tenho que tomar as obras de Nietzsche, em minha estante, e conferir se o que está lá escrito é mesmo aquilo que Losurdo diz. É a segunda experiência desse tipo - a primeira, foi quando A Invenção da Mitologia, de Marcel Detienne, por dizer coisas tão "novas" e inusitadas - para mim - a respeito de Platão, fazia-me recorrer de dez em dez minutos a República, para checar as informaões. Com Losurdo, a situação é ainda mais grave. Num primeiro momento, a desconstrução de Losurdo vai me dando entusiasmo, porque toca o coração da recepção metafórica do filósofo, e faz dos representantes dessa corrente verdadeiras falsas testemunhas de um inquérito - eles mentem, seja para si, seja para mim. Nesse caso, só posso experimetnar alegria, primeiro, por confirmar minhas suspeitas de que se lia mal o filósofo e, segundo, por me libertar das garras da metáfora da recepção - que detesto.

2. Todavia, ai!, Losurdo começa, vagarosa, mas inexoravelmente, a aproximar-se da desconstrução de meu própro bunker. Aí, meus amigos, como não haveria de ser?, aquele entusiasmo vai se transformando em perplexidade. Losurdo, agora, me gasta uma seção inteira, de quatro páginas, para me pintar Nietzsche como um "novo" Platão - o da República - a mesmíssima de Detienne. Modo meu de dizer que Losurdo afirma que Nietzsche tinha consciência de que a religião devia ser usada pela classe dominante para, por meio dela, "educar e modelar" o povo. A denúncia de ópio, de Marx, assume, em Nietzsche, conotação de prescrição médica - senhores, senhores, ao povo, religião na veia, posto que, assim, eles terão por certo que seu sofimento, necessário (à manutenção da ordem [que nos beneficia, a nós, classe dominante]) é não apenas natural, mas prescrição divina...

3. Corri, a checar a citação em Para além de bem e mal, parágrafo 61, e, sem tirar nem pôr, lá está. Meus malditos olhos, se passaram, passaram por aquela parágrafo sem se dar conta do que liam? Tenho em minha "defesa" as marcas a giz de cera que acompanham as páginas dessa obra, o que sigifica que a leitura se deu há muitos anos atrás, mais de dez, porque não uso giz de cera para marcar meus livros há mais de uma década anos. Já se disse que não se deve ler um livro para o qual não se está preparado, e é provável que eu não estivesse mesmo preparado para o Parágrafo 61 - ou, não vou descartar a hipótese, não quisesse ver, então, o que agora Losurdo me lança às faces.

4. Saio, pois, cocheando, manco, dessa surra de historiador. E, no entanto, já que tomo Para além do bem e do mal nas mãos, permitam-me a transcrição de um parágrafo que, com uma só apresentação, representa o significado da obra de Losurdo - retirar a máscara de Nietzsche, bem como ilustrar como o próprio Nietzsche pode ter preparado a armadilha em que caíram (caímos?) os receptadores metafóricos de sua filosofia e obra. Ei-lo, mandando um recado a seus posteriores;

Tudo o que é profundo ama a máscara; as coisas mais profundas têm mesmo um ódio à imagem e ao simbolo. Não será a antítese o disfarce adequado de que se serve o pudor dum deus? Eis um problema digno de ser posto: seria de espantar que um místico qualquer não tivesse já ousado algo de semelhante. Há factos de caráter tão delicado que convém encobri-los e torná-los irreconhecíveis por meio de uma grosseria; há certas manifestações de amor e de uma generosidade exuberante, depois das quais nada há de mais aconselhável do que pegar num bastão e dar uma sova à testemunha ocular: assim se turva a sua memória. Certas pessoas sabem perfeitamente turvar e maltratar a própria memória para, ao menos, se vingarem desse único cúmplice: - o pudor é muito engenhoso. Não são as piores coisas que nos causam mais vergonha: não há só maldade atrás sde uma máscara, - quanta bondade há na astúcia. Eu podia imaginar que alguém que tivesse de esconder algo de precioso e de vulnerável rolasse pela vida grosseiro e redondo como uma verde e velha pipa de vinho, de pesados arcos: a subtileza do seu pudor assim o quer. Para um homem dotado de um profundo pudor, os destinos e as decisões delicadas escolhem caminhos por onde poucos transitaram e de cuja existência nem os seus mais íntimos confidentes devem ter conhecimento: escondem-se deles tanto o seu perigo de vida como a sua reconquistada segurança vital. Um homem assim escondido que, por instinto, precisa da palavra para se calar e silenciar, que é inesgotável nos meios de velar o seu pensamento, quer e favorece que uma sua máscara o substitua no coração e no espírito dos seus amigos; admitindo, contudo, que o não queira, aperceber-se-á um dia de que, apesar de tudo, só se conhece dele uma máscara, - e que é bom que assim seja. Todo espírito profundo necessita de uma máscara: mais ainda, em redor de todo espírito profundo cresce necessariamente uma máscara, graças à interpretação sempre falsa, quer dizer, superficial, de cada palavra, de cada passo, de cada sinal de vida que ele dá (Nietzsche, Para além de bem e mal. Lisboa: Guimârâes, 1987, § 40, p. 55-56).


5. E a questão que se me impõe violentamente, agora, é: terá Losurdo retirado, enfim, a máscara de Nietzsche?



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio