sexta-feira, 26 de novembro de 2010

(2010/586) Gn 1,1 como oração subordinada adverbial temporal reduzida


1. Ensinar hebraico aos alunos da graduação em Teologia não é tão difícil - o que resulta difícil é fazer com que saibam do que estamos falando, quando, por exemplo, dizemos que determinada extensão do texto hebraico corresponde a uma oração subordinada adverbial temporal reduzida. Não é tanto a forma gráfica tão diferente do hebraico quanto o seu relativamente pobre domínio da Língua Portuguesa o responsável pelo baixo rendimento dos alunos na disciplina - sempre com as exceções. Nada há mais importante no hebraico - claro, é força de expressão - do que o domínio do (próprio) vernáculo.

2. Sendo assim, dizer que Gn 1,1 constitui uma oração subordinada adverbial temporal reduzida produz um inferno conceitual na cabeça dos alunos, e é preciso, então, retornar à Gramática. Um exemplo de oração subordinada adverbial temporal (não reduzida): "Quando você se separou de mim / Quase que a minha vida teve fim", a clássica letra da música de Roberto Carlos. A poesia começa com uma oração subordinada adverbial, porque toda a primeira oração, que é a suboerdinada, circunstancia a segunda oração, e depende dela. Essa oração subordinada não se sustenta sozinha. Quando você a pronuncia, a própria leitura se encarrega, se corretamente feita, de informar que falta alguma coisa, falta essa que a oração principal se incumbirá de suprir. E é, ainda, temporal, porque a circunstancialidade de que a oração subordinada reveste a oração principal tem a ver com o tempo, com o momento em que o que aí está declarado se estasbeleceu. Ou seja, o poeta quase morreu, isto é, no momento, quando a sua suposta amada se separou dele.

3. As reduzidas são formas de construção daquela mesma circunstancialidade, mas sem o recurso direto à conjunção adverbial correspondente, usando-se, alternativamente, para isso, o particípio, o gerúndio e o infinitivo verbais. Por exemplo, poderia reescreveu a estrofe do Roberto, reduzindo-a a infinitivo, por exemplo: "em você se separar de mim, quase que a minha vida teve um fim". Em lugar da conjunção adverbial temporal "quando", criei uma locução temporal reduzida de infinitivo, utilizando0-me do verbo, naturalmente, no infinitivo. O resultado é o mesmo que antes, mas a forma de o obter é diferente.

4. Bem se vê que, até tudo isso ser explicado delicadamente aos alunos, os créditos acabaram, e é a hora do recreio... Duro o trabalho de professor de hebraico - pior ainda o nosso, meros exegetas, para quem o hebraico constitui uma língua instrumental. Mas, muito bem, dirijamo-nos para Gn 1.1. Almeida reconsagrou a já consagrada fórmula de Gn 1,1, tratando-a como uma oração absoluta, independente - uma oração "coordenada assindética", diríamos, provavelmente: "No princípio, Deus criou os céus e a terra", ponto. Assim pronunciada, porque assim traduzida, a Bíblia abre-se com uma declaração de caráter - Deus, criador da criação, criação, criatura de Deus!

5. Para o efeito "Almeida", basta que se traduza mais ou menos literalmente o texto hebraico conforme recebido pela tradição. Tomado na sua vocalização grafada, o verbo bará constitui, de fato, um "perfeito" - digamos, nosso pertérito perfeito, vá lá. Se é assim, a tradução não se pode condenar. Nesse caso, a Bíblia abrir-se-ia mesmo com a declaração triunfal do provedor cósmico: Deus criou o mundo...

6. No entanto... Pelo menos três "dados" põem-nos a pensar. Primeiro, o segundo texto da criação, Gn 2,4b-3,24, que segue o primeiro, G 1,1-2,4a, começa com uma oração subordinada adverbial temporal reduzida de inifitivo: "No dia de fazer Yahweh Elohim terra e céus...". Segundo, a clássica "cosmogonia" babilônica, o Enuma 'elish, começa com uma oração subordinada adverbial temporal: "Quando no alto...". Terceiro, uma longa série de cosmogonias do Antigo Oriente Próximo - mesopotâmicas (sumerianas e caldaicas), ugaríticas e egípcias - começam com oração subordinada adverbial temporal. E a questão que se impõe, então, é se Gn 1,1 seria uma exceção. Poderia ser...

7. Não é, todavia, o que pensava Rashi, "erudito" judeu do século XI, que considerava que os massoretas, que inseriram as vogais no texto consonantal hebraico, fixando, assim, sua vocalização definitiva, erraram, quando vocalizaram a raiz br' de Gn 1,1 como "perfeito" (bará). Para Rashi, a sua vocalização adequada é "infinitivo" (berô). Se Rashi estiver correto, e para mim, está, resulta inapropriada a tradução clássica de Almeida, e o correto seria, então, literalmente, essa tradução: "No princípio do criar de 'Elohim os céus e a terra...", fazendo de Gn 1,1 não mais a oração independente da tradição, mas uma oração subordinada adverbial temporal reduzida de infinitivo, porque construída com o infinitivo - berô - de br'.

8. Nesse caso, a declaração de criação, mesmo, só se encontra em Gn 1,3: "e disse 'Elohim, seja a luz, e a luz foi", que, no contexto, não acontece no momento em que o verso é escrito, porque o escritor circunstancializa essa criação lá, naquele momento, no início, quando 'Elohim criou os céus e a terra. Mas a implicação mais importante é que Gn 1,2 transforma-se, assim, numa cláusula parentética, um "parêntesis", cujo objetivo é descrever o estado da terra, no princípio do criar 'Elohim os cés e a terra, isto é, quando "Deus" começou a criar os céus e a terra, a terra estava um deserto e uma desolação. Na prática, é como se centro da questão fosse justamente esse: meus irmãos, a terra estava uma desolação terrível, um deserto angustiante, quando Deus começou a criação - mas, então, Deus disse, seja a luz, e eis que a terra se tornou, de novo, a nossa terra... Ah, meus amigos, e desde aí e diante cabe uma longa série de observações que, ao fim e ao cabo, desconstroem não apenas a imagem que temos desse texto, mas, ainda mais contundentemente, seu significado.

9. Não é aqui o espaço para tentar os detalhes. O leitor provocado pode, se interessado, ler minha tese de doutorado, que trata rigorosamente disso. Como "moral" dessa história, eu diria que Deus está nos detalhes, conquanto o diabo, também. Mas o mais alvissareio dessa história é que a tradição pousa sobre uma base "objetiva", um texto, e o exercício de crítica desse texto reverbera significativamente num exercício inexorável de crítica da tradição - não por outra razão se disse que o método histórico-crítico é nocivo à Igreja, declaração, obviamente, de um legítimo representante do poder reacionário que sustenta a manutenção fossilizante da tradição - sempre nos limites de seus interesses. Não importa por onde você comece, se pela tradição, se pela base redacional em que ela se sustenta - a crítica, mais cedo ou mais tarde, desenterra o passado, e revela as entranhas dos processos de legitimação retórica de um longo jogo de poder. E, meu caros leitores, vocês não fazem idéia de como eu adoro isso... Do interor de meu "gabinete", fazer e ver ruirem os milênios de pedra com os quais se me pretendem enredar...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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