1. A essa altura, deve ser notória aos visitantes desta terra de Peroratio a minha animosidade para com o "espírito pós-moderno", quando - e isso é sua marca característica - ele, como ácido epistemológico, dissolve os fundamentos, desintegra a história, reduz a idiossincrasias as percepções objetivas, desmaterializa a matéria.
2. Ora, acabo de encontrar, em Marc Bloch, A Sociedade Feudal (Lisboa: 70, 1987, p. 109-110) uma descrição de um período e de uma prática históricos que em tudo cai como uma luva para essa desarvorada pós-modernidade:
2.1 "Seguramente, se a indústria, eterna em si mesma, dos falsários e dos mitómanos conheceu uma excepcional prosperidade durante aqueles séculos, a responsabilidade cabe, em larga medida, não só às condições da vida jurídica, que se baseava nos precedentes, mas também à desordem reinante: entre os documentos forjados, mais do que um, foi-o para substituir um texto autêntico que fora destruído. No entanto, o facto de tantas produções falsas terem então sido executadas, que tantas pias personagens, de incontestável elevação de caráter tenham mergulhado nessas maquinações, apesar de expressamente condenadas, naquele mesmo tempo, pelo direito e pela moral, traz em si um sintoma bem digno de reflexão: por um curioso paradoxo, à força de respeitar o passado, ia-se até ao ponto de reconstruir tal como deveria ter sido".
3. Trata-se, nesse caso, dos primeiros séculos da Idade Média, fenômeno concentrado, mas não contudo restrito, aos séculos VIII a XI. Marc fala de muitíssima quantidade. Falsificações, imaginações, então vendidas como "fatos históricos", ou seja, "fraudes santas", eventualmente semelhantes àquela que um Josias comete, em nome da Tradição, sob as vistas de Yahweh.
4. O que eu vejo aí, isto é, o que esse episódio tem em comum com a pós-modernidade, e a pós-modernidade nisso que ela tem de pior - a dissolvição da materialidade "objetiva" da história (um Vattimo que adora citar - e equivocadamente, mas, em termos vattimonianos, que diferença isso faz? - uma única citação de Nietizsche sobre fatos e interpretações, tendo, na mesma obra, dezenas de outras que a desmentem) -, é justamente o fato de que, lá e cá, não importa o passado tal qual ele foi: lá, fraude, cá, tanto faz, posto que o passado não se pode reconstruir, de modo que se eu ponho Davi e Jesus a tomarem chá com Gandhi está tudo muito bem, e se um pós-moderno me critica, auscuto-lhe os pulmões, haverá catarro aí, posto que o seu delírio só pode lhe advir das febres. Um passado perdido na promiscuidade subjetiva da pós-modernidade, que diferença faz pôr Adão a brincar de pique-esconde com Rui Barbosa? Como, pos-modernamente, reconhecer, na Doação de Constantino, uma fraude, demonstrável, apenas, por meia da assunção objetiva da materialização da consciência humana em textos, apetrechada pelo ferramental histórico-crítico? Mas que história?!, mas que ferramental histórico-crítico?!
5. Eu morro de rir quando vejo atitudes pós-modernas encarnadas em saídas pragmatistas. O pesquisador, o exegeta, o historiador, ah, ele não tem como "reconstruir" o passado, porque não se lhe tem acesso, a objetividade inexiste, é mais do que uma invenção, é uma patologia (quando não um gesto de poder!), de modo que a exegese satisfaça-se a si mesma na masturbação da metáfora, a história, na defumação das carnes, o pesquisador, na retórica plástica da homilética. Aí, o sapientíssimo pós-moderno me pega um ícone qualquer da tradição, um Weber, por exemplo, e, com ele, propõe "modelos" de leitura da realidade social... Aí eu pergunto: ué? Mas como Weber pôde "ver", se eu sou "cego"?
6. Todavia, dir-lhe-eis quando acaba a pós-modernidade, essa estapafúrdia confusão de pseudo-epistemologia com cripto-política: quando o pós-moderno tem de medicar-se, e, então, fará questão de que o balconista lhe venda o remédio rigorosamente prescrito pelo médico. Quando tiver de provar, em juízo, que o bem imóvel onde reside é seu, e o fará por meio da apresentação fiduciária de uma escritura para isso lavrada em cartório. Quando for ao caixa eletrônico, cioso de lá ter dois tostões, e, no entanto, fizer-se constar só um. A pós-modernidade é uma brincadeira de mau gosto, uma birra de criança mimada, a dizer, para o sol que ele, porque assim o quer a criança, não existe, não... Prescrevam-se escalda-pés, chá de casca de cebola e capim limão, cama e uma boa dose de crítica indiciária que passa. E, se não passar, é caso de internar-se o pobre...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Ora, acabo de encontrar, em Marc Bloch, A Sociedade Feudal (Lisboa: 70, 1987, p. 109-110) uma descrição de um período e de uma prática históricos que em tudo cai como uma luva para essa desarvorada pós-modernidade:
2.1 "Seguramente, se a indústria, eterna em si mesma, dos falsários e dos mitómanos conheceu uma excepcional prosperidade durante aqueles séculos, a responsabilidade cabe, em larga medida, não só às condições da vida jurídica, que se baseava nos precedentes, mas também à desordem reinante: entre os documentos forjados, mais do que um, foi-o para substituir um texto autêntico que fora destruído. No entanto, o facto de tantas produções falsas terem então sido executadas, que tantas pias personagens, de incontestável elevação de caráter tenham mergulhado nessas maquinações, apesar de expressamente condenadas, naquele mesmo tempo, pelo direito e pela moral, traz em si um sintoma bem digno de reflexão: por um curioso paradoxo, à força de respeitar o passado, ia-se até ao ponto de reconstruir tal como deveria ter sido".
3. Trata-se, nesse caso, dos primeiros séculos da Idade Média, fenômeno concentrado, mas não contudo restrito, aos séculos VIII a XI. Marc fala de muitíssima quantidade. Falsificações, imaginações, então vendidas como "fatos históricos", ou seja, "fraudes santas", eventualmente semelhantes àquela que um Josias comete, em nome da Tradição, sob as vistas de Yahweh.
4. O que eu vejo aí, isto é, o que esse episódio tem em comum com a pós-modernidade, e a pós-modernidade nisso que ela tem de pior - a dissolvição da materialidade "objetiva" da história (um Vattimo que adora citar - e equivocadamente, mas, em termos vattimonianos, que diferença isso faz? - uma única citação de Nietizsche sobre fatos e interpretações, tendo, na mesma obra, dezenas de outras que a desmentem) -, é justamente o fato de que, lá e cá, não importa o passado tal qual ele foi: lá, fraude, cá, tanto faz, posto que o passado não se pode reconstruir, de modo que se eu ponho Davi e Jesus a tomarem chá com Gandhi está tudo muito bem, e se um pós-moderno me critica, auscuto-lhe os pulmões, haverá catarro aí, posto que o seu delírio só pode lhe advir das febres. Um passado perdido na promiscuidade subjetiva da pós-modernidade, que diferença faz pôr Adão a brincar de pique-esconde com Rui Barbosa? Como, pos-modernamente, reconhecer, na Doação de Constantino, uma fraude, demonstrável, apenas, por meia da assunção objetiva da materialização da consciência humana em textos, apetrechada pelo ferramental histórico-crítico? Mas que história?!, mas que ferramental histórico-crítico?!
5. Eu morro de rir quando vejo atitudes pós-modernas encarnadas em saídas pragmatistas. O pesquisador, o exegeta, o historiador, ah, ele não tem como "reconstruir" o passado, porque não se lhe tem acesso, a objetividade inexiste, é mais do que uma invenção, é uma patologia (quando não um gesto de poder!), de modo que a exegese satisfaça-se a si mesma na masturbação da metáfora, a história, na defumação das carnes, o pesquisador, na retórica plástica da homilética. Aí, o sapientíssimo pós-moderno me pega um ícone qualquer da tradição, um Weber, por exemplo, e, com ele, propõe "modelos" de leitura da realidade social... Aí eu pergunto: ué? Mas como Weber pôde "ver", se eu sou "cego"?
6. Todavia, dir-lhe-eis quando acaba a pós-modernidade, essa estapafúrdia confusão de pseudo-epistemologia com cripto-política: quando o pós-moderno tem de medicar-se, e, então, fará questão de que o balconista lhe venda o remédio rigorosamente prescrito pelo médico. Quando tiver de provar, em juízo, que o bem imóvel onde reside é seu, e o fará por meio da apresentação fiduciária de uma escritura para isso lavrada em cartório. Quando for ao caixa eletrônico, cioso de lá ter dois tostões, e, no entanto, fizer-se constar só um. A pós-modernidade é uma brincadeira de mau gosto, uma birra de criança mimada, a dizer, para o sol que ele, porque assim o quer a criança, não existe, não... Prescrevam-se escalda-pés, chá de casca de cebola e capim limão, cama e uma boa dose de crítica indiciária que passa. E, se não passar, é caso de internar-se o pobre...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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