sexta-feira, 1 de maio de 2009

(2009/237) De uma nova atitude religiosa


1. Mas, talvez, nem tão nova assim. Todavia, é invariável - todas as vezes em que manifesto em classe minha opinião a respeito de a religião deixar-se passar pelo crivo da autoconsciência científico-humanista, sempre há que se reagir afirmando que, então, a religião acaba, que, então, a igreja fecha, que, então, os homens se tornarão, todos, irreligiosos. Ou seja: a religião só é religião enquanto o é tal e como é hoje - epistemologicamente alienada das condições de sua emergência desde a mente e o corpo humanos.

2. Para os menos inteirados da questão, uma resenha: a religião constitui um regime social de crenças, valores e práticas sob, sobre e por meio dos quais uma comunidade, historicamente situada, se organiza e vive. Consciente ou inconscientemente, tais sistemas sociais não faziam (nem fazem) distinções epistemológicas acerca da dimensão física e metafísica da realidade - pelo contrário: uma vez que surge na consciência social o conceito cosmogônico de "mundo dos deuses", a realidade passa a constituir-se tanto por esse nível quanto pelo nível trivial da corporeidade, sendo que este deixa-se, doravante, sobredeterminar-se por aquele. Nesses termos - fé e conhecimento tornam-se a mesma coisa - indistintamente.

3. A partir da emancipação da razão humana, o que, em última análise, foi possível a partir da Reforma, mas se conscubstanciou socialmente, a rigor, a partir das revoluções epistemológicas da Inglaterra e da Europa, séculos XVII e XVIII, materializando-se na forma de cultura emancipada, laica, a partir do século XIX, consolidando-se nas Repúblicas do século XX, fé e conhecimento foram distinguidos. O mundo cosmogônico foi rachado ao meio - a placa tectônica da ciência assumiu o conhecimento, a da religião, a fé. E a placa tectônica do conhecimento, das ciências, a despeito de todo esforço da religião, vai, ano após ano, sobrepondo-se ao território da fé, tornando-o cada vez menor, e, por isso, mais reacionário. Somente à força do tempo, uma vez que as gerações mais fundamentalistas vão retornando ao pó de onde tudo sai, é que a fé se vai deixando adaptar às novas condições "geopolíticas" da "criação".

4. Minha tese é a seguinte: a religião deveria compreender, definitivamente, que nada que ela sustente como fundamental tem a condição do conhecimento - é fé. Se a religião o admitisse, passaria a refletir sobre si mesma, sobre a condição do que é a fé, isto é, a doutrina explicativa, a cosmovisão religiosa, bem como o que significa a sua expressão, da fé e da religião, num mundo emancipado de conhecimento e ciência. A insistência de a religião agarrar-se aos modelos de "resposta" pré-modernos (e, agora, estrategicamente, pós-modernos!) é a sua absoluta vontade de manter-se tal qual se viu nascer, há milênios.

5. A religião, contudo, deveria admitir, de uma vez por todas, que ela não "sabe". Deveria admitir, de uma vez por todas, que as esperanças que ela diz engendrar, são meramente imaginativas, criativas, imaginárias. Que o conforto que eventualmente o regime mitológico em que ela opera produz não pode ser justificativa para a alienação da consciência religiosa, como se o preço para a não-dor fosse o não-saber. A não-consciência da traição não gera a dor da consciência de sabê-lo, mas não desfaz o fato de que se é vítima da traição...

6. Não se trata, por favor, de dizer que o conhecimento, que a ciência, passe a assumir as funções da religião, e que a religião desapareça. Trata-se de assumir que a religião tem de abrir mão de sua auto-compreensão mitológica, e assumir que os regimes de compreensão devem ser operados segundo a epistemologia do conhecimento. Ora, sabendo-se que os mitos, as crenças, os valores, os ritos, as práticas, são engendrados pela mente humana, operando social e historicamente, a auto-compreensão que a religião tem de si deve, hoje, obrigatoriamente, deixar-se animar por essa informação. Cada vez que a religião esquece, cada vez que a religião esconde, cada vez que a religião coíbe - ela mente, ela míngua, ela mata.

7. Se, por um lado, a religião não se tornará em ciência - a dimensão mitológica é uma condição da cosnciência humana, e há de se lidar, digamos, de modo "religioso" com ela -, por outro lado ela não poderá mais dizer de si aquilo que seja incompatível com o que ela sabe de si, e sabe de si por meio das rotinas humanístico e cognítivo-científicas. O mito permanecerá, mas sabendo-se mito, sabendo-se imaginação.

8. Segue-se, pois, que tenho consciência de que a religião, então, mudará. E os alunos: acabará, ninguém mais vai lá. Mesmo? Bem, essa reação apenas prova a consciência que os alunos têm de que a religião acredita que tem de mentir, primeiro para si mesma e, depois, para seus fiéis, para que ela e eles permaneçam "lá". Neurose, já o disse Freud. Ópio, já o disse Marx. Poder, já o disse Nietzsche. Não é à toa que todo regime de defesa da teologia-que-aí-está começa, primeiro, batendo nesses senhores de respeito - mesmo Hans Küng: se esses senhores não forem assassinados, a religião sempre estará desnudada. A função do teólogo, hoje, é a mesma do alfaiate do rei...

9. Por outro lado, o erro fundamental desses alunos, é meu juízo a respeito, é aquele erro clássico de julgar-se um paradigma novo por meio dos fundamentos do paradigma antigo. Como, no paradigma antigo, o conhecimento é puro mito normativo, uma vez que, no paradigma novo, a alma da religião permanece sendo o mito, mas, agora, não mais normativo, deduz-se, pois que, já que todos estavam ali não por conta do mito, mas por causa da norma, suprimida a condição normativa do mito, ninguém ali fique mais.

10. Também a religião deveria, contudo, pensar nesse "lá". Há espaço, sim, na mística moderna, numa eventual religião de recorte epistemológico moderno, para o mito - mas não mais para o mito "homogeinizante". Cada consciência, um mito, cada sujeito, uma "religião". O que se pode esperar, nessas condições, seria a comunhão horizontal, dada a igualdade da condição mítica da esperança humana universal, cada homem, uma esperança, e não mais uma comunhão de recorte supostamente vertical, como o querem, pelo menos, Cristianismo e Islamismo, cada qual crendo ser dever de ofício fazer de todos cópia da norma-padrão. Ms não há norma, conquanto haja mito...

11. Não me importa a manutenção dos sistemas fósseis da religião pré-moderna, como não me importam mais os sistemas políticos igualmente pré-modernos. Importame-me a lucidez, o esclarecimento, a emancipação da conciência moderna - e crítica - que sabe do que se trata quando ela balbucia "Deus, tende misericórdia de mim"...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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