segunda-feira, 27 de abril de 2009

(2009/227) Mitologia grega e historicismo israelita-judaíta


1. Desde por volta do século VI a.C. - e, provavelmente, mesmo desde antes, se nos ativermos ao movimento órfico - que, na Grécia, explodiu a questão "teórica" das almas. Desde as escolas pitagóricas até as platônicas, passando pela longa série de especulações teológico-filosóficas então em moda, os gregos debruçaram-se sobre a questão - insisto, teórica - a respeito da "animação" dos corpos, com o que rapidamente chegaram à noção de distinção entre corpo e alma (o que nem de longe significa que ela já não estava presente em tradições mais antigas do que a Grécia, como as culturas extremo orientais, inclusive, com as quais não é improvável que Platão tenha mantido contato).

2. Na escola pitagórica, a questão da alma teria sido aprofundada por analogia com a astronomia/astrologia. As almas e os planetas foram assimilados à idéia de movimento ordenado, e, desde aí, a alma passou a ser assumida como um elemento distinto do corpo, conseqüentemente, celeste, e, por extensão, divino.

3. Derivou daí a pergunta pela razão de essa alma divina estar, então, encarnada num corpo. As respostas, teológicas, todas, e, com isso, quero dizer tratarem-se de racionalizações dedutivas, sempre, foram muitas. Desde a noção teológica de uma "queda", ou seja, um "pecado" das almas ainda em estado celeste, até noções de metempsicose (re-encarnação) e necessidade metafísica. E tudo isso, não se deixe passar despercebido, muito antes de o judaísmo e, naturalmente, o cristianismo beberem dessas águas, porque será dessa ânfora que hão de se embriagar...

4. Na escola platônica (cf. Timeu e Fédon, por exemplo), a criação é obra de um Demiurgo, e a encarnação explica-se por uma prisão da alma na matéria. Aqui reside a dicotomia de dois mil e quinhentos anos entre "matéria" e "pensamento", entre "corpo" e "alma" (ainda que ela seja anterior, extremo-oriental, o Ocidente bebeu-a daqui, e não de lá, ainda que a Grécia tenha, eventualmente, bebido, sim, daquelas fontes mais antigas).

5. A "queda" neoplatônica foi assimilada pelos judeus de Alexandria, que passaram a interprertar assim a narrativa de Adão e Eva, no Éden. Durante a História da Teologia, o que propriamente está em Platão foi lido como se estivesse em Gn 2-3. Na prática, que cristão não repete esse mesmo gesto, hoje? O protestantismo inteiro não é senão um desdobramento da helenização de Gn 2-3, de tal sorte que, se recuperamos o sentido histórico-social e polítco de Gn 2-3, há de se recorrer imediatamente a Platão, sob risco de toda uma cristologia tornar-se inútil...

6. Naquele período relativamente recente de reação conservadora da teologia européia (1850-1920 - porque, depois de 1920, não havia mais reação, já que essa corrente venceu a batalha), o problema era justamente a manutenção da teologia ortodoxa (neoplatônica) à custa da assim entendida necessária diferenciação da tradição bíblica de seu entorno cultural - tarefa impossível, claro. Mas a apologética é sempre mais esperta do que se pode esperar, porque ela sempre une o interesse comum de catequisadores e catequisandos em torno de uma cumplicidade de convencimento.

7. O discurso que se construiu para diferenciar Israel/Judá, logo, por extensão, a Igreja, dos povos ao redor e da filosoia helênica, foi dizer que, enquanto os povos próximo-orientais e a filosofia helênica eram mitológicos e metafísicos, a "revelação" bíblica (israelita/judaíta) era "histórica". Que, enquanto em Platão, a "queda" é metafísica, na "revelação", ela é histórica. Aquilo lá, mito de povos atrasados. Isso aqui, histórica de gente grande.

8. Bem, se você não se deixar arrastar pela tarrafa da apologética, há de considerar que não se trata de outra coisa aí que não jogos de palavras. Porque, se você aceitar que a revelação bíblica é "histórica", deverá, então, lê-la de modo histórico, e não se chega, sob nenhuma circunstãncia, caso se use ferramenta e pressupsotos metodologicamente históricos, partindo-se de Gn 2-3, ao Timeu e a Fédon - que é a que se resume grande parte da harmatologia crstã, de que depende a cristologia e a soteriologia.

9. Gn 2-3 nada tem a ver com uma "queda" de almas na matéria. Trata-se de uma peça política de leitura político-religiosa da adminstração judaíta, cujo propósito é rotular pessoas e prescrever comportamentos, teologicamente manipulados e normatizados. É pura política - e, quando daí se extrai uma "teologia" metafísica, é política também essa produção - bem como o produto.

10. Eu aceito, quem topa?, tratar historicamente os textos bíblicos. Mas não aceito fingir que levamos isso a sério, quero dizer, essa historicidade e esse tratamento histórico conseqüente. Se é para tratar a "revelação" bíblica a partir de sua emergência histórica, então vamos até onde esse caminho levar. E preparemos nossas "almas" para descobrir que não será, mas não mesmo, àquelas salas barrocas e góticas da teologia cristã que adentraremos, à medida que cavamos...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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