segunda-feira, 27 de abril de 2009

(2009/228) Sexualidade feminina e patologia teológica

1. Em 2000, na RIBLA 37, Nancy Cardoso Pereira - e haveria de ser mais quem? - referiu-se a três dos principais "profetas" da tradição veterotestamentária como homens mal-amados: Oséias, Jeremias e Ezequiel (1). A respeito de Oséias, o "mal-amado", e de suas metáforas relacionadas à idolatria como prostituição, Nancy conclui por "el amor mal-amado como mediación privilegiada de la profecía". De Jeremias, o "não-amado", após tecer comentários a respeito do tema da infidelidade, presente no corpo do livro, Nancy conclui:

1.1 "El conflicto con las mujeres en la parte final del libro de Jeremías (44,9-19) reinstala la tensión y la crítica contra un posible protagonismo de las mujeres en el culto de la Reina del Cielo. Las intrincadas relaciones entre culto y relación amorosa, las complejas relaciones entre la divinidad masculina y las divinidades femeninas van a ser resueltas en la forma del discurso profético, incorporando la palabra/afecto del amor mal-amado como atributo del dios masculino".

2. Finalmente, quanto a Ezequiel, "arrancado do amor", Nancy reitera as denúncias anteriores, classificando a temática da profecia como misógina: "la profecía de Ezequiel tal vez sea la más misógina, la que más explota de modo virulento las metáforas negativas asociadas a las mujeres en sus relaciones con los hombres". Com efeito, a leitura de alguns trechos de Ezequiel provocam a imaginação programática de cenas sexualmente muitíssimo violentas, principalmente em Ez 16 e 23. Segundo Nancy, "en la relación con la divinidad masculina resentida en el amor mal-amado, las mujeres pueden ser incorporadas en el lenguaje y en la realidad cuando asumen la vergüenza y la boca cerrada".

3. O texto de Nancy constitui um "clássico" da aproximação latino-americana de gênero a uma porção específica da Bíblia Hebraica. Eu não estou convencido de que todo texto profético da Bíblia Hebraica deva ser aberto pela chave hermenêutica do gênero, tanto quanto não estou nem um pouco convencido de que se deva abrir a Bíblia Hebraica a partir da chave do "pobre" - cada texto deve ser aberto por meio de sua própria chave hermenêutica, o que é um paradoxo, porque só se chegará a ela abrindo-o. Muitas vezes tais chaves "ideológicas" são verdadeiros "estupros", para manter-me no espectro das metáforas sexuais próprias da denúncia de Nancy. Todavia, é inquestionável que grande parte da Bíblia Hebraica deixe-se marcar, e de modo ostensivamente negativo, quer seja por um misoginismo fundamental, quer por uma atitude programaticamente negativa em relação à sexualidade feminina.

4. Mesmo quando em aparente relação com a sexualidade de modo geral. Por exemplo, Jeremias 2,20-25 constitui uma imprecação contra a idolatria, e compara esse "vício do povo" ao cio da dromedária e da jumenta, ou da cabra, as quais, na época apropriada, "farejam o vento", isto é, atrás dos machos (v. 23 e 24). Ora, o que há de errado em dromedárias e jumentas farejarem os machos, naturalmente para a cópula, se essa é sua forma natural de procriação? O que parece vir à tona numa passagem desse tipo é um duplo jogo de metonímia - salta-se da idolatria para a sexualidade feminina, negativando-a, segundo os termos da intencionalidade da analogia, e, além disso, salta-se da sexualidade feminina para a sexualidade do animal fêmea, ou seja, é sempre a sexualidade da fêmea que está sob ataque. Há um princípio patológico nesse discurso, naturalmente, como de resto, em todo discurso teológico dessa natureza.

5. Também em Gn 3,16b, a sexualidade - mais uma vez, feminina - é marcada pelo ferro em brasa da negatividade. Se a mulher que lê tal verso, dá-lhe crédito, haverá de considerar-se marcada por maldição divina a cada vez que seu ventre pedir carícia, e, de outro lado, há de se submeter aos caprichos quiriarcais de seu marido-e-macho, pelo fato de ser essa a pena de sua maldição: "seu desejo será para teu marido, e ele te dominará". Um texto como Cântico dos Cânticos 7,10 parece-me, programaticamente, entrar em choque com essa cosmovisão teológica: "o desejo dele o traz a mim": literalmente, em todos os termos, o inverso de Gn 3,16b... Ah, sim, porque não havemos de crer que todas as mulheres são Eva: algumas são Lilith, certamente.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Para faciliar o acesso do leitor, consulte-se a versão em espanhol da RIBLA: Nancy Cardoso Pereira, ...sin perder la ternura: jamás!de hombres mal-amados y mujeres prisioneras en el amor, Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n. 37, 2000, disponível na página do Conselho Latino-americano de Igrejas. O leitor deve atentar para o fato de que Nancy passa ao largo da discussão relativa à identidade entre o que a tradição chama de "Oséias", "Jeremias" e "Ezequiel" e os livros homônimos a eles atribuídos. A rigor, Nancy aplica-se ao modo como essa literarura, mais do que qualquer outra, lida com a metáfora pejorativa da sexualidade feminina. Obviamente que Nancy permitiu-se uma certa liberdade no trato da relação entre os profetas mal-amados em si e a literatura de onde se pode reconstruir suas "identidades".

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