1. O que ocorre caso se assuma a independência axiológica da religião e da teologia? Dito de outro modo, que competência tem um sisdtema não-religioso ou não teológico para analisar e julgar elementos teóricos e práticos da religião e da teologia? Dito, ainda, por meio de outras palavras: as ciências podem analisar e/ou julgar elementos da religião e da teologia? A ética pode? O que quer que se queira chamar de "especificidade" do religioso possui prerrogativas de independência em face de toda e qualquer outra área do comportamento humano?
2. Minha sonora resposta é não. A religião não constitui, sob nenhum aspecto, uma quarta pragmática. Desde Aristóteles, passando por Kant, reconhece-se a validade de se tratarem práticas teleológicas humanas, não as biológicas, sob apenas três rubricas: querer, sentir, saber, isto é, volição, afeição e cognição, respectivamente, política, estética e heurística. O que quer que um ser humano faça intencionalmente, isso que ele faz está, desde sempre, classificado em uma dessas três câmaras pragmáticas. Ou tal ação põe em confronto o homem com outro homem, ou põe em confronto o homem consigo mesmo, ou põe em confronto o homem com o não-homem. Onde quer que a religião, por extensão também a teologia, se materialize, o que aí vierem a fazer os homens, ou será política, ou estética, ou heurística (até hoje, apenas estética e política, porque a religião e a política têm pavor da heurística, tanto quanto os demônios, é o que se diz, da cruz e os vampiros da luz do sol).
3. Isso implica em dizer que a prática religiosa constitui uma prática humana como outra qualquer. Nada há que aí se faça ou possa fazer que não incorra automaticamente nas implicações de quaisquer outras práticas humanas, como esporte, trabalho, lazer, guerra, arte, sexo. Como em todas as demais atividades humanas, o que se faz na religião tem implicações legais, éticas, sanitárias, comunitárias, sociais, econômicas. Como todas as demais práticas humanas, as práticas religiosas não constituem um universo de legislação própria, e, mesmo quando assim a religião se pensa, é apenas intra-muros que encontra validade para sua proposição, entre os domésticos, porque, extra-muros, aí vale a lei do país.
4. Mais do que natural. Imagine-se uma sociedade que admita (não é ésdrúxula a hiótese) que as práticas religiosas, porque relacionadas ao sagrado, estejam livres das implicações morais, éticas e legais de um povo e uma nação. Ora, uma nação que coibisse a poligamia, deveria admiti-la a religiosos? Uma nação que proibisse o constrangimento de consciências, admiti-lo-ia para os religiosos? Uma nação que proibisse remessa de capital não declarado para o exterior, estaria impossibilitada de aplicar tal lei a religiosos? Uma nação que proibisse a intolerância religiosa, deveria tolerar uma prática religiosa intolerante? Uma nação que proibisse o cerceamento da expressão política, permitiria que uma religião controlasse o discurso político?
5. Em outra direção, que competência tem a ética e a moral para imiscuirem-se em práticas tribais, sejam brasileiras e africanas, se for aceita a alegação de que tais práticas respondem ao seu próprio mundo, à sua própria cultura, aos seus próprios valores, de modo que estão em situação de não ser possível o seu alcance por parte da crítica político-social? Faz sentido? O mal a que tais práticas tradicionais proporcionam a mulheres e crianças há de ser tolerado em nome de uma cultura, como se ampla ela fosse, quando, a rigor, é, por exemplo, machista, quiriarcal e patriarcal?
6. Desde a Reforma, inicialmente de forma lenta e, a partir das Luzes e da Revolução Francesa, cada vez de forma mais acelerada, a religião e a teologia passaram a sofrer intervenções públicas por parte da sociedade. Inicialmente, aqueles elementos mais nocivos à nova configuração das sociedades modernas - democracia, liberalismo político-econômico, emancipação cultural - foram simplesmente suspensos, como se faz com certas brincadeiras de criança que, aos olhos dos pais, tornaram-se perigosas. Assim, os Estados e as sociedades ocidentais passaram a pensar-se político-socialmente sem a presença coercitiva da religião e da teologia, relegadas ao campo privado da experiência humana.
7. Permaneceram toleradas em seu próprio nicho ecológico, desde que não interfiram nas regras laicas e básicas da sociedade. E eis o ponto: desde que a nova relação sociedade versus religião se estabeleceu, a religião e a teologia até podem ter de si idéias de megalomania, idéias de visionários, antecipações escatológicas universais, autocompreensões metafísicas, essas coisas próprias do universo infantil. Basta, contudo, que a sociedade decida, pronto, acabou a brincadeira. Por exemplo - no momento em que a República Federativa do Brasil, à luz de sua Constituição, determinar que acabou a patifaria de uma religião demonizar a outra em rede nacional, fecham-se 99% dos programas evangélicos na TV, que aí estão para demonstração universal da má consciência cristã, bem como para vergonha do evangelho.
8. Não me pego animado com o crescimento da expressão evangélica no país. Não mesmo. Talvez, com todo o seu atraso teológico característico, se ainda fosse a expressão daquele espectro mais tradicional, mais civilizado, mais educado, da tradição evangélica, mais cortez, eu diria, mais republicano no trato, ainda que não na alma, talvez, talvez eu até me animasse. Mas o que tem tomado força é justamente o espectro mais alienante, mais estupidificante, mais promotor do delírio teológico e místico, da intolerância retórica e teológica, - e ainda tem "iluminado" a dizer que o problema da Igreja no Brasil é o liberalismo! -, verdadeira contra-mão da civilidade e civilização ocidentais. O que isso significa pode-se conteplar na TV, nos discursos dos apóstolos de plantão. Alguns me causam náuseas. "Louvor", alienação, dinheiro e cura - eis a que se resume a festa evangélica da mídia evangélica - no momento, com raras exceções. Se isso reflete a orgia teológica concreta das comunidades, vamos mal, muito mal, muitíssimo mal. E à luz do dia... Uma vez que a sociedade não se manifesta, deve, de algum modo, estar a tirar bons proveitos da situação.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Minha sonora resposta é não. A religião não constitui, sob nenhum aspecto, uma quarta pragmática. Desde Aristóteles, passando por Kant, reconhece-se a validade de se tratarem práticas teleológicas humanas, não as biológicas, sob apenas três rubricas: querer, sentir, saber, isto é, volição, afeição e cognição, respectivamente, política, estética e heurística. O que quer que um ser humano faça intencionalmente, isso que ele faz está, desde sempre, classificado em uma dessas três câmaras pragmáticas. Ou tal ação põe em confronto o homem com outro homem, ou põe em confronto o homem consigo mesmo, ou põe em confronto o homem com o não-homem. Onde quer que a religião, por extensão também a teologia, se materialize, o que aí vierem a fazer os homens, ou será política, ou estética, ou heurística (até hoje, apenas estética e política, porque a religião e a política têm pavor da heurística, tanto quanto os demônios, é o que se diz, da cruz e os vampiros da luz do sol).
3. Isso implica em dizer que a prática religiosa constitui uma prática humana como outra qualquer. Nada há que aí se faça ou possa fazer que não incorra automaticamente nas implicações de quaisquer outras práticas humanas, como esporte, trabalho, lazer, guerra, arte, sexo. Como em todas as demais atividades humanas, o que se faz na religião tem implicações legais, éticas, sanitárias, comunitárias, sociais, econômicas. Como todas as demais práticas humanas, as práticas religiosas não constituem um universo de legislação própria, e, mesmo quando assim a religião se pensa, é apenas intra-muros que encontra validade para sua proposição, entre os domésticos, porque, extra-muros, aí vale a lei do país.
4. Mais do que natural. Imagine-se uma sociedade que admita (não é ésdrúxula a hiótese) que as práticas religiosas, porque relacionadas ao sagrado, estejam livres das implicações morais, éticas e legais de um povo e uma nação. Ora, uma nação que coibisse a poligamia, deveria admiti-la a religiosos? Uma nação que proibisse o constrangimento de consciências, admiti-lo-ia para os religiosos? Uma nação que proibisse remessa de capital não declarado para o exterior, estaria impossibilitada de aplicar tal lei a religiosos? Uma nação que proibisse a intolerância religiosa, deveria tolerar uma prática religiosa intolerante? Uma nação que proibisse o cerceamento da expressão política, permitiria que uma religião controlasse o discurso político?
5. Em outra direção, que competência tem a ética e a moral para imiscuirem-se em práticas tribais, sejam brasileiras e africanas, se for aceita a alegação de que tais práticas respondem ao seu próprio mundo, à sua própria cultura, aos seus próprios valores, de modo que estão em situação de não ser possível o seu alcance por parte da crítica político-social? Faz sentido? O mal a que tais práticas tradicionais proporcionam a mulheres e crianças há de ser tolerado em nome de uma cultura, como se ampla ela fosse, quando, a rigor, é, por exemplo, machista, quiriarcal e patriarcal?
6. Desde a Reforma, inicialmente de forma lenta e, a partir das Luzes e da Revolução Francesa, cada vez de forma mais acelerada, a religião e a teologia passaram a sofrer intervenções públicas por parte da sociedade. Inicialmente, aqueles elementos mais nocivos à nova configuração das sociedades modernas - democracia, liberalismo político-econômico, emancipação cultural - foram simplesmente suspensos, como se faz com certas brincadeiras de criança que, aos olhos dos pais, tornaram-se perigosas. Assim, os Estados e as sociedades ocidentais passaram a pensar-se político-socialmente sem a presença coercitiva da religião e da teologia, relegadas ao campo privado da experiência humana.
7. Permaneceram toleradas em seu próprio nicho ecológico, desde que não interfiram nas regras laicas e básicas da sociedade. E eis o ponto: desde que a nova relação sociedade versus religião se estabeleceu, a religião e a teologia até podem ter de si idéias de megalomania, idéias de visionários, antecipações escatológicas universais, autocompreensões metafísicas, essas coisas próprias do universo infantil. Basta, contudo, que a sociedade decida, pronto, acabou a brincadeira. Por exemplo - no momento em que a República Federativa do Brasil, à luz de sua Constituição, determinar que acabou a patifaria de uma religião demonizar a outra em rede nacional, fecham-se 99% dos programas evangélicos na TV, que aí estão para demonstração universal da má consciência cristã, bem como para vergonha do evangelho.
8. Não me pego animado com o crescimento da expressão evangélica no país. Não mesmo. Talvez, com todo o seu atraso teológico característico, se ainda fosse a expressão daquele espectro mais tradicional, mais civilizado, mais educado, da tradição evangélica, mais cortez, eu diria, mais republicano no trato, ainda que não na alma, talvez, talvez eu até me animasse. Mas o que tem tomado força é justamente o espectro mais alienante, mais estupidificante, mais promotor do delírio teológico e místico, da intolerância retórica e teológica, - e ainda tem "iluminado" a dizer que o problema da Igreja no Brasil é o liberalismo! -, verdadeira contra-mão da civilidade e civilização ocidentais. O que isso significa pode-se conteplar na TV, nos discursos dos apóstolos de plantão. Alguns me causam náuseas. "Louvor", alienação, dinheiro e cura - eis a que se resume a festa evangélica da mídia evangélica - no momento, com raras exceções. Se isso reflete a orgia teológica concreta das comunidades, vamos mal, muito mal, muitíssimo mal. E à luz do dia... Uma vez que a sociedade não se manifesta, deve, de algum modo, estar a tirar bons proveitos da situação.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
PS. uma vez que está na moda Peroratio ver-se tocado por teorias de conspiração, não faria mal recomendar mais uma: Délcio Monteiro de Lima, Os Demônios Descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. Típica "teoria da conspiração", o autor afirma que os movimentos neo-pentecostais foram introduzidos na América Latina, programaticamente, pela "inteligência" estadunidense, com o objetivo de frear os movimentos religiosos de esquerda característicos das décadas de 60 e 70, estando relacionados a um programa mais amplo de enfrentamento dos movimentos socialistas/comunistas da/na região. O leitor que leia e decida se faz sentido. Se julgarmos a suposta "causa" pelo "efeito", dá até dor de cabeça...
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