domingo, 19 de abril de 2009

(2009/186) Um Eclesiastes medieval


1. No ano de 1992, essa era a canção que minha turma escolhera como processional, para ser tocada, quando entrássemos, no dia de nossa formatura. Imagináramos o efeito. Era, sobretudo, inspirador e lindo - soberba cantata! Estávamos, naturalmente, excitados. Havia mágica em tudo. A celebração ocorreria, e ocorreu, no templo da Primeira Igreja Batista de Nova Iguaçu. Na noite da formatura, contudo, quem de direito responsável pela música tocada naquele "espaço sagrado", recusou-se a permitir que um trecho de Carmina Burana - Fortuna imperatrix mundi - fosse nele ouvido. Blasfêmia, cogitou-se. Havíamos entregue a fita cassete - debalde. Um pianista, apressadamente, acorreu ao piano, e improvisou uma melodia tradicional. Formamo-nos.

2. Dezessete anos depois, ainda não esqueci daquele dia. Pior do que esse momento, só aquele em que o coro da PIB de Mesquita, em 1987, recusou-se a cantar Aleluia, de Haendel, para Bel entrar, em nossa cerimônia de casamento... Acompanhada, Eline, querida, solfejou uma canção na flauta doce, doce que ela era, e fez menos amargo aquele instante...

3. Fortuna imperatrix mundi é um Eclesiastes medieval. É obra de religiosos, monges, transformada em "cantata cênica" por Carl Orff. É, sobretudo, magnífica e linda. A melodia, mas, não menos, a letra. É verdadeira, para Eclesiastes, é verdadeira para quem mais o disser, porque é a pura verdade dessa vida de dia após dia, na qual há um dia para cada dor e alegria.


Fortuna imperatrix mundiCarl Orff

O Fortuna
velut luna
statu variabilis,
semper crescis
aut decrescis;
vita detestabilis
nunc obdurat
et tunc curat
ludo mentis aciem,
egestatem,
potestatem
dissolvit ut glaciem.
Sors immanis
et inanis,
rota tu volubilis,
status malus,
vana salus
semper dissolubilis,
obumbrata
et velata
michi quoque niteris;
nunc per ludum
dorsum nudum
fero tui sceleris.

Sors salutis
et virtutis
michi nunc contraria,
est affectus
et defectus
semper in angaria.
Hac in hora
sine mora
corde pulsum tangite;
quod per sortem
sternit fortem,
mecum omnes plangite!

Fortune plango vulnera
stillantibus ocellis
quod sua michi munera
subtrahit rebellis.
Verum est, quod legitur,
fronte capillata,
sed plerumque sequitur
Occasio calvata.

In Fortune solio
sederam elatus,
prosperitatis vario
flore coronatus;
quicquid enim florui
felix et beatus,
nunc a summo corrui
gloria privatus.

Fortune rota volvitur:
descendo minoratus;
alter in altum tollitur;
nimis exaltatus
rex sedet in vertice
caveat ruinam!
nam sub axe legimus
Hecubam reginam.




Fortuna, imperatriz do mundo
Carl Orff

Ó Fortuna
és como a Lua
mutável,
sempre aumentas
e diminuis;
a detestável vida
ora escurece
e ora clareia
para brincar com a mente;
miséria,
poder,
ela os funde como gelo.

Sorte monstruosa
e vazia,
tu – roda volúvel –
és má,
vã é a felicidade
sempre dissolúvel,
nebulosa
e velada
também a mim contagias;
agora por brincadeira
o dorso nu
entrego à tua perversidade.

A sorte na saúde
e virtude
agora me é contrária.

e tira
mantendo sempre escravizado.
Nesta hora
sem demora
tange a corda vibrante;
porque a sorte
abate o forte,
chorais todos comigo!

Choro as feridas da fortuna
com os olhos rútilos;
pois que o que me deu
ela perversamente me toma.
O que se lê é verdade:
esta bela cabeleira,
quando se quer tomar,
calva se mostra

No trono da Fortuna
sentava-me no alto,
coroado por multicores
flores da prosperidade;
mas por mais prospero que eu tenha sido,
feliz e abençoado,
do pináculo agora despenquei,
privado da glória.

A roda da Fortuna girou:
desço aviltado;
um outro foi guindado ao alto;
desmensuradamente exaltado
o rei senta-se no vértice –
precavenha-se contra a ruína!
porque no eixo se lê
rainha Hécuba.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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