1. Você escreveu: "Vestem a nudez da realidade experimentada. Dão cor quando a vida é experimentada como cinza. Há que se viver com a longa duração desses simbolismos". Isso você disse de "mitos", de "narrativas bíblicas" e de "construções de sistemas teológicos", disse que eles, na prática, tudo uma só coisa, afinal, encantam. Esse "encantam", segundo Detienne, o de A Invenção da Mitologia, está relacionado, inseparavelmente, em A República, de Platão, a "convencer" e "enfeitiçar". Encantar, lá, tem esse sentido hipnótico, mágico, heteronomizante. Penso que você usa esse sentido também - encantar, aí, é mais do que "maravilhar", não é?, é enfeitiçar, pôr feitiço, "amarrar".
2. Concordo com você. Esse é um discurso que, por força da gravidade, cai para o terreno da hermenêutica. "Vestir a nudez da realidade experimentada" é uma afirmação de caráter hermenêutico: não uma Hermenêutica-Arauto, conteudística, como quer a nova escola da "hermenêutica", um pé em Gadamer, outro em Vattimo, um em Rorty, outro em Habermas, mas uma hermenêutica num certo e plausível Heidegger, que bebe em Husserl e Kant, em Schleiermacher e, principalmente, em Dilthey. Sobretudo em um Nietzsche ainda muito mal compreendido nesse século estranho que foi o XX (vale a pena informarmo-nos sobre Domenico Losurdo!). "Vestir a nudez da realidade" com mito... Sim. E, contudo, não. Não está disponível, para a espécie humana, vestir a nudez da realidade experimentada, porque nenhum homem nem mulher algum, um dia, ontem, hoje e amanhã, experimentou ou experimentará alguma coisa parecida com uma "realidade nua". A captação da "realidade" (a secundidade de Peirce, o "mundo" de Heidegger) já a tem em trajes apropriados, já a vestiu, recatadíssima mocinha de família. Só há experiência da realidade trajada, vestida. Nua, não há.
3. Essa é, pois, uma questão relevante. Não se trata, corrija-me, Haroldo, eventualmente, de vestir a realidade nua, posto que já a temos, inexoravelmente vestida. Mas de que, então? Bem, em primeiro lugar, do fenômeno histórico da emergência, em nós, da conciência "histórica" e "hermenêutica", e de apreendermos o conceito schopenhaueriano de "representação" (Vattimo tem ojeriza disso!). As representações que temos, representações do "real", são, já, não-nuas. "Ontem" ainda, descobrimos, e isso dentro do mito!, que vivemos sob (sobre e dentro, também) o "real" sempre por meio de mitos. Essa é a conquista "heurística" mais recente da história de nossa epistemologia. Descobrir isso não é descobrir que os mitos vestem a realidade nua, mas que os mitos são a roupa com que apreendemos, sempre, a realidade - e ela nunca está nua.
4. Qual o ganho, pois, com essa consciência crítica? Tornar nua a realidade, delírio de adolescente? Sonhar com a moça nua? É natural que essa pulsão erótica invada a cabeça de quem tem hormônios de fazer ver e querer ver. Mas a consciência histórica do mito e da hermenêutica apenas nos dão consciência da "nossa" realidade - capturadores do real em redes míticas inexoráveis. Ora, isso pode nos dar o poder de manejarmos, nós mesmos, os mitos com que vamos capturar o real. Não preciso usar mais o mito da Igreja, da Teologia, do Papa, de Lutero - você está certo: tudo encantamento, prestidigitações, mágica e magia. Só posso, contudo, superar essa roupa por outra. Viver o real nu, não.
5. Morin chama isso de "possessão" (em sentido religioso, ao modo da possessão das entidades dos cultos africanos) das idéias. Já escrevi aqui sobre isso. Não podemos viver sem idéias. Nunca. Mas podemos escolher as idéias com que construiremos o "mundo" - e Morin sugere: escolhei idéias fracas!, idéias que vivam no "limite de sua combustão". Mitos fracos, frágeis, encantam com muito pouca força. Podemos viver mais simbioticamente com eles, num jogo de vai-e-vém, numa troca constante de controle, ora nós, ora eles.
6. Mas, e eis o ponto: a Teologia como heurística não quer encantar - mas desencantar. Não quer convencer, mas dialogar. Não quer enfeitiçar, mas creditar espaço de autonomia. Por isso ela é heurística. Um teólogo heurístico que, eventualmente, tente encantar, peca. Deve corrigir-se. Sua essência é não-diretiva, necessariamente, porque só é diretivo o que é político ("tu deves!"), e a Teologia, se heurística, não é política - é investigação heurística (redunância!) do real - enquanto vestido, mas a despeito da roupa. Não dá para levantar a saia da moça e olhas suas coxas. Temos que tentar olhar para a moça através da roupa que lhe pusemos, e, ainda assim, fazer ciência (e vocês meninas, se o real lhes for um "moço" airoso e bem trajado...).
7. A tarefa é tão árdua que muitos desistem antes de começar, e, em sua desistência, criam roupas que pretendem interditar o esforço aos corajosos e tenazes - não é apenas o dogma que interdita a pesquisa, mas a teoria de uma existência não-fundacional ("acordos intersubjetivos não-situados"), como o quer uma corrente que gostou de dizer-se "hermenêutica", mas que se traduz, no final das contas, em rendição à "herança" e à "tradição", como o quer Gadamer: a linguagem não é algo que acontece pelo homem, mas algo que acontece no homem...
8. Finalmente, você fala de dar cor à realidade experimentada como cinza. Boa! Você descreve a "depressão". Aí, está certo, nesse sentido. A depressão inibe o lançamento da tarrafa hermenêutica que a consciência humana lança incessantemente no mar do real. Sem a tarrafa, sem o véu - sem a gosma do caramujo, como logo se verá que gosto de dizer - o real não é tomado como "tal", e "nu", mas apresenta-se pálido, sem cor, sem força atrativa, sem eroticidade, sem libido, à língua. Quando ela se vai, a cor volta à nossa representação do real - a roupa velha da moça cheirosa é como que lavada e perfumada, e a excitação volta à carne humana.
9. Esses temas me atraem, como a luz, aos insetos. Penso, Haroldo, que nada, absolutamente nada é, no campo da intelectualidade, do que o assentamento das bases operacionais da mente/consciência humana (hermenêutica, neurociência, pragmática). Com o que fecho minha intervenção, declarando que a Teologia heurística tem de deixar de ser mito, e converter-se em método - com o que, contudo, jamais verá o corpo nu da amante eternamente vestida. A ciência - e a Teologia como ciência, igualmente - não é uma nova forma de platonismo, uma nova ontologia, uma nova metafísica - ela é uma nova maneira de lidar com os mitos. E isso faz se não toda, certamente, ao mesno, muita diferença.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Concordo com você. Esse é um discurso que, por força da gravidade, cai para o terreno da hermenêutica. "Vestir a nudez da realidade experimentada" é uma afirmação de caráter hermenêutico: não uma Hermenêutica-Arauto, conteudística, como quer a nova escola da "hermenêutica", um pé em Gadamer, outro em Vattimo, um em Rorty, outro em Habermas, mas uma hermenêutica num certo e plausível Heidegger, que bebe em Husserl e Kant, em Schleiermacher e, principalmente, em Dilthey. Sobretudo em um Nietzsche ainda muito mal compreendido nesse século estranho que foi o XX (vale a pena informarmo-nos sobre Domenico Losurdo!). "Vestir a nudez da realidade" com mito... Sim. E, contudo, não. Não está disponível, para a espécie humana, vestir a nudez da realidade experimentada, porque nenhum homem nem mulher algum, um dia, ontem, hoje e amanhã, experimentou ou experimentará alguma coisa parecida com uma "realidade nua". A captação da "realidade" (a secundidade de Peirce, o "mundo" de Heidegger) já a tem em trajes apropriados, já a vestiu, recatadíssima mocinha de família. Só há experiência da realidade trajada, vestida. Nua, não há.
3. Essa é, pois, uma questão relevante. Não se trata, corrija-me, Haroldo, eventualmente, de vestir a realidade nua, posto que já a temos, inexoravelmente vestida. Mas de que, então? Bem, em primeiro lugar, do fenômeno histórico da emergência, em nós, da conciência "histórica" e "hermenêutica", e de apreendermos o conceito schopenhaueriano de "representação" (Vattimo tem ojeriza disso!). As representações que temos, representações do "real", são, já, não-nuas. "Ontem" ainda, descobrimos, e isso dentro do mito!, que vivemos sob (sobre e dentro, também) o "real" sempre por meio de mitos. Essa é a conquista "heurística" mais recente da história de nossa epistemologia. Descobrir isso não é descobrir que os mitos vestem a realidade nua, mas que os mitos são a roupa com que apreendemos, sempre, a realidade - e ela nunca está nua.
4. Qual o ganho, pois, com essa consciência crítica? Tornar nua a realidade, delírio de adolescente? Sonhar com a moça nua? É natural que essa pulsão erótica invada a cabeça de quem tem hormônios de fazer ver e querer ver. Mas a consciência histórica do mito e da hermenêutica apenas nos dão consciência da "nossa" realidade - capturadores do real em redes míticas inexoráveis. Ora, isso pode nos dar o poder de manejarmos, nós mesmos, os mitos com que vamos capturar o real. Não preciso usar mais o mito da Igreja, da Teologia, do Papa, de Lutero - você está certo: tudo encantamento, prestidigitações, mágica e magia. Só posso, contudo, superar essa roupa por outra. Viver o real nu, não.
5. Morin chama isso de "possessão" (em sentido religioso, ao modo da possessão das entidades dos cultos africanos) das idéias. Já escrevi aqui sobre isso. Não podemos viver sem idéias. Nunca. Mas podemos escolher as idéias com que construiremos o "mundo" - e Morin sugere: escolhei idéias fracas!, idéias que vivam no "limite de sua combustão". Mitos fracos, frágeis, encantam com muito pouca força. Podemos viver mais simbioticamente com eles, num jogo de vai-e-vém, numa troca constante de controle, ora nós, ora eles.
6. Mas, e eis o ponto: a Teologia como heurística não quer encantar - mas desencantar. Não quer convencer, mas dialogar. Não quer enfeitiçar, mas creditar espaço de autonomia. Por isso ela é heurística. Um teólogo heurístico que, eventualmente, tente encantar, peca. Deve corrigir-se. Sua essência é não-diretiva, necessariamente, porque só é diretivo o que é político ("tu deves!"), e a Teologia, se heurística, não é política - é investigação heurística (redunância!) do real - enquanto vestido, mas a despeito da roupa. Não dá para levantar a saia da moça e olhas suas coxas. Temos que tentar olhar para a moça através da roupa que lhe pusemos, e, ainda assim, fazer ciência (e vocês meninas, se o real lhes for um "moço" airoso e bem trajado...).
7. A tarefa é tão árdua que muitos desistem antes de começar, e, em sua desistência, criam roupas que pretendem interditar o esforço aos corajosos e tenazes - não é apenas o dogma que interdita a pesquisa, mas a teoria de uma existência não-fundacional ("acordos intersubjetivos não-situados"), como o quer uma corrente que gostou de dizer-se "hermenêutica", mas que se traduz, no final das contas, em rendição à "herança" e à "tradição", como o quer Gadamer: a linguagem não é algo que acontece pelo homem, mas algo que acontece no homem...
8. Finalmente, você fala de dar cor à realidade experimentada como cinza. Boa! Você descreve a "depressão". Aí, está certo, nesse sentido. A depressão inibe o lançamento da tarrafa hermenêutica que a consciência humana lança incessantemente no mar do real. Sem a tarrafa, sem o véu - sem a gosma do caramujo, como logo se verá que gosto de dizer - o real não é tomado como "tal", e "nu", mas apresenta-se pálido, sem cor, sem força atrativa, sem eroticidade, sem libido, à língua. Quando ela se vai, a cor volta à nossa representação do real - a roupa velha da moça cheirosa é como que lavada e perfumada, e a excitação volta à carne humana.
9. Esses temas me atraem, como a luz, aos insetos. Penso, Haroldo, que nada, absolutamente nada é, no campo da intelectualidade, do que o assentamento das bases operacionais da mente/consciência humana (hermenêutica, neurociência, pragmática). Com o que fecho minha intervenção, declarando que a Teologia heurística tem de deixar de ser mito, e converter-se em método - com o que, contudo, jamais verá o corpo nu da amante eternamente vestida. A ciência - e a Teologia como ciência, igualmente - não é uma nova forma de platonismo, uma nova ontologia, uma nova metafísica - ela é uma nova maneira de lidar com os mitos. E isso faz se não toda, certamente, ao mesno, muita diferença.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Duro é este discurso...
...que me faz lembrar
duas passagens.
A primeira, uma cena de Matrix,
quando Cypher está num restaurante
fazendo um acordo com o Agente
Smith, e ocorre o seguinte diálogo:
- Agente Smith: Negócio fechado,
Senhor Reagen?
- Cypher: Sabe... eu sei que
esse bife não existe, sei que
quando eu o coloco na boca a
Matrix diz ao meu cérebro que
ele é suculento e delicioso.
Após nove anos, sabe o que eu
percebi? A ignorância é
maravilhosa!
(...)
A segunda, uma reação ao item 7,
a lembrança das palavras de
Eclesiastes 1,18: "Porque na muita sabedoria há muito enfado; e o que aumenta o conhecimento aumenta a tristeza."
Abraço fraterno,
Elias Aguiar
A rigor, Elias - trata-se do mesmo tipo de "lembrança": uma, em escala positiva, outra, negativa. Mas trata-se do mesmo.
Sim, é verdade: a ignorância é uma delícia.
Há algum tempo atrás, podia ser dito que a ignorância era como a virgindade - perdeu, já era. Mas hoje, não: hoje, restauram-se hímens plasticamente. A ignorância, contudo, uma vez perdida, não há como voltar atrás.
A saída é aprender a viver assim - e não há escola para isso, Elias, não há não...
Um abraço,
Osvaldo.
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