1. Desde a Reforma, um lento mas inexorável movimento de "moralização" e "eticalização" do Evangelho pôs-se em marcha. À medida que e quanto mais avançavam as conseqüências da própria Reforma - secularização, emancipação, crítica -, tanto mais as dimensões místicas do "sacramento" iam se dissolvendo na racionalidade, de modo que a racionalização da fé viu-se premida à transformação do Evangelho em "moral" e "ética" - as novas plataformas sobre as quais era possível um discurso evangélico racionalizado, à medida do homem europeu.
2. O lado pietista/puritano da caminhada foi maximamente premido pela exigência de transformação do Evangelho em moral. Trata-se, nesse caso, do modelo do "crente-é-aquele-que-não": não fuma, não bebe, não joga, não xinga. É a "moral" do não, da castração, como se "educação" fosse a contenção das forças naturais. Teve lá e tem por aí seus seguidores. De resto, todas as comunidades têm seus momentos de pietismo/puritanismo, quando é de convir... É, ainda posso anotar, muito reveladora, freudianamente reveladora, que essa característica dessa corrente pieeitista/puritana a torne co-irmã da vertente "liberal", que ela tanto contesta - ambas são "moralistas", ainda que sob dinâmicas diferentes, tanto quanto são, ambas, subjetivas, da ordem da experiência... Xipófagas...
3. Uma outra corrente, dita "progressista", dita "evangelical", viu-se mormente forçada a converter o Evangelho em ética. É a versão "positiva" - "sim" - da corrente anterior - "não". Mas é a mesma coisa, trata-se do mesmo fenômeno protestante. Trata-se da tentativa de dar uma "cara" sócio-antropológica, logo, "moderna", ao velho Evangelho cristão. De fato, muitas das proposições da ética moderna podem ser assentadas em algumas das boas declarações postas em Jesus, nos Evangelhos. Naturalmente que há um esgarçamento sempre crescente na base dessa corrente, como ocorreu com as CEBS, de onde saiu o PT - chega uma hora quando o "valor" político - a ética - percebe-se como comparativamente fundamental, e pressente seu atravancamento pela "espiritualidade", e o abraço se desfaz...
4. Devo arriscar um juízo: essa vertente ética do Evangelho caiu numa armadilha, própria da caminhada secularizante da Reforma: se o valor do Evangelho é o valor ético, resulta necessário dizer que o que quer que haja de não-ético nas Escrituras e na Tradição cristã não tem valor, assim como, ao contrário, mas do mesmo modo, tudo quanto haja de ético em qualquer religião, em qualquer lugar, em qualquer cultura, tem valor. A ética tornou-se um valor maior do que o sacramento, do que a revelação, do que a inspiração. A ética fez do Cristianismo uma religião como qualquer outra, e, da fé cristã, um exemplo de todoas as demais. Nada mais é singular nos arraiais paulinos... Imagine-se: toda a Tradição da "posse" da "terra", inequívoca narrativa não-ética, posta como fundamento... do céu... Não admira a caminhada histórica desse Cristianismo ali alicerçado...
5. Não estou reclamando, não. Por mim, é por aí mesmo. Todavia, acho muito curioso, para dizer pouco, que os defensores dessa corrente "ética" do Protestantismo não se apercebam - nao?, será que não, mesmo? - de que, se com a boca, afirmam que o valor evangélico é a ética, com a mesma boca não podem a firmar que o Evangelho é o único caminho - porque não é verdade que a ética só se encontre no Cristianismo - muito pelo contrário. Se o Cristianismo - se a Teologia - deve curvar-se (e deve!) à ética, eis aí um valor maior... Mas a mesma boca contradiz-se, afirmando as duas coisas, uma a anular a outra...
6. Quando ouço pastores evangelicais pregarem e blogarem sobre a exclusividade do Caminho evangélico, e, ao mesmo tempo, defenderem o valor ético da fé, pergunto-me se estou diante de alguém que não faz contas do que diz, ou se diante de alguém que faz, mas faz que não faz, porque, como Paulo, quer, por todos os meios, ganhar a todos - não importa como...
7. Para mim, que, sim, abraço a tese de que a ética é um valor incomesuravelmente maior do que o sacramento e a religião, conquanto sacramento e religião tenham seu valor cultural, mas não superior ao da ética, o valor de uma passagem bíblica, o valor de um dito de Jesus, não está em ser bíblica ou em ser de Jesus - se for ética, tem valor, se não for, não tem, e, nesse caso, mesmo se bíblica, mesmo se de Jesus.
8. Mas não nos enganemos: não há ética absoluta. Ética é valor construído, valor humano, valor histórico. Não me venham com fantasias os pregadores de uma ética de Deus. Há paciência para tudo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. O lado pietista/puritano da caminhada foi maximamente premido pela exigência de transformação do Evangelho em moral. Trata-se, nesse caso, do modelo do "crente-é-aquele-que-não": não fuma, não bebe, não joga, não xinga. É a "moral" do não, da castração, como se "educação" fosse a contenção das forças naturais. Teve lá e tem por aí seus seguidores. De resto, todas as comunidades têm seus momentos de pietismo/puritanismo, quando é de convir... É, ainda posso anotar, muito reveladora, freudianamente reveladora, que essa característica dessa corrente pieeitista/puritana a torne co-irmã da vertente "liberal", que ela tanto contesta - ambas são "moralistas", ainda que sob dinâmicas diferentes, tanto quanto são, ambas, subjetivas, da ordem da experiência... Xipófagas...
3. Uma outra corrente, dita "progressista", dita "evangelical", viu-se mormente forçada a converter o Evangelho em ética. É a versão "positiva" - "sim" - da corrente anterior - "não". Mas é a mesma coisa, trata-se do mesmo fenômeno protestante. Trata-se da tentativa de dar uma "cara" sócio-antropológica, logo, "moderna", ao velho Evangelho cristão. De fato, muitas das proposições da ética moderna podem ser assentadas em algumas das boas declarações postas em Jesus, nos Evangelhos. Naturalmente que há um esgarçamento sempre crescente na base dessa corrente, como ocorreu com as CEBS, de onde saiu o PT - chega uma hora quando o "valor" político - a ética - percebe-se como comparativamente fundamental, e pressente seu atravancamento pela "espiritualidade", e o abraço se desfaz...
4. Devo arriscar um juízo: essa vertente ética do Evangelho caiu numa armadilha, própria da caminhada secularizante da Reforma: se o valor do Evangelho é o valor ético, resulta necessário dizer que o que quer que haja de não-ético nas Escrituras e na Tradição cristã não tem valor, assim como, ao contrário, mas do mesmo modo, tudo quanto haja de ético em qualquer religião, em qualquer lugar, em qualquer cultura, tem valor. A ética tornou-se um valor maior do que o sacramento, do que a revelação, do que a inspiração. A ética fez do Cristianismo uma religião como qualquer outra, e, da fé cristã, um exemplo de todoas as demais. Nada mais é singular nos arraiais paulinos... Imagine-se: toda a Tradição da "posse" da "terra", inequívoca narrativa não-ética, posta como fundamento... do céu... Não admira a caminhada histórica desse Cristianismo ali alicerçado...
5. Não estou reclamando, não. Por mim, é por aí mesmo. Todavia, acho muito curioso, para dizer pouco, que os defensores dessa corrente "ética" do Protestantismo não se apercebam - nao?, será que não, mesmo? - de que, se com a boca, afirmam que o valor evangélico é a ética, com a mesma boca não podem a firmar que o Evangelho é o único caminho - porque não é verdade que a ética só se encontre no Cristianismo - muito pelo contrário. Se o Cristianismo - se a Teologia - deve curvar-se (e deve!) à ética, eis aí um valor maior... Mas a mesma boca contradiz-se, afirmando as duas coisas, uma a anular a outra...
6. Quando ouço pastores evangelicais pregarem e blogarem sobre a exclusividade do Caminho evangélico, e, ao mesmo tempo, defenderem o valor ético da fé, pergunto-me se estou diante de alguém que não faz contas do que diz, ou se diante de alguém que faz, mas faz que não faz, porque, como Paulo, quer, por todos os meios, ganhar a todos - não importa como...
7. Para mim, que, sim, abraço a tese de que a ética é um valor incomesuravelmente maior do que o sacramento e a religião, conquanto sacramento e religião tenham seu valor cultural, mas não superior ao da ética, o valor de uma passagem bíblica, o valor de um dito de Jesus, não está em ser bíblica ou em ser de Jesus - se for ética, tem valor, se não for, não tem, e, nesse caso, mesmo se bíblica, mesmo se de Jesus.
8. Mas não nos enganemos: não há ética absoluta. Ética é valor construído, valor humano, valor histórico. Não me venham com fantasias os pregadores de uma ética de Deus. Há paciência para tudo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Prof. Eu queria entender melhor.
O sr fala do sacramento que com a reforma vem se transformando em “moral” e “ética” . O sacramento já não é um princípio que rege o indivíduo? Cito exemplo, os últimos sacramentos de um moribundo feito pela igreja católica. Ele já não é uma ética divina para recomendação da alma? Concordo. O lado pietista/puritano trouxe um modelo brasileiro de crente “não fuma, não bebe, não xinga,..” mas o sacramento com suas recomendações também o fazia, cito, “o moribundo”?
O sr. Fala que os defensores da “ética” do Protestantismo afirmam que o valor evangélico é a ética e que não se pode afirmar que é o único caminho porque existe “éticas” fora do Cristianismo. O sr também fala que a “ética” é valor construido, valor humano, valor histórico, e diz chega para esse negócio de “ética de Deus”. Aqui vai minha dúvida ao ler seu texto: se tudo que construimos até hoje sobre teologia, vem de uma experiência com o sagrado, não existe aí uma “ética” do sagrado, “Deus”, demonstrando uma conduta moral?
Não, não. O exemplo que você cita de sacramento não tem nada a ver nem com moral, nem com ética, tem a ver com... sacramento: veículo mítico-ritualísta, mágico-teológico, para acesso à graça de Deus. Quanto a uma ética divina, não, não a há. O que há são éticas humanas, e as éticas ditas divinas são sobredeterminações político-sociais de uns sobre outros, traduzida como que fora de Deus - mas, no fundo, é do clero. É tica é relação humana com base sócio-cultural humana.
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