sábado, 28 de março de 2009

(2009/120) Um acordo cons(m)igo mesmo


1. Antes de meus dezenove anos, eu vivia em um mundo de inúmeras possibilidades "epistemológicas". É provável que a razão fosse a aura eclética do ambiente em que fora criado - minha mãe estivera, durante todo esse tempo, envolvida com cosmovisões, atitudes e práticas que iam desde os rosa-cruzes até o Catolicismo, passando pelo Kardecismo (ainda me vêm à retina os volumes azuis, oito, eu acho, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, na estante), a Umbanda, e sobretudo, aquele assunto que constituía, sem sombra de dúvida, a maior parte das conversas entre ela e amigos, a Parapsicologia, bem como temas equivalentes - desde a mística esotérica até histórias de assombração e mistério, aura e viagens astrais. Uma lembrança relativamente afetiva (por quê?) são os livros de Lobsang Terça-Feira Rampa...

2. À época, tudo isso me fazia muito sentido. Meus irmãos e eu tentáramos, algumas vezes, exercícios de telecinésia com pregadores no varal - nem uma brisazinha sequer ajudou, balançando-os, para que nos animássesmos, crédulos... Algumas vezes, em minha fase OVNI, subia até o alto da caixa-d'água (o "ponto culminante") da casa onde morávamos, e, deitado de costas, olhando o céu estrelado, pedia e esperava por eles, algumas vezes, em minha profunda solidão adolescente, desejando ir-me até o infinito.

3. Isso tudo acabou num único golpe, quando me "converti" à fé cristã, em 10/08/1984, um sábado, no templo de uma Igreja Batista de Mesquita/RJ. A partir daí, a única mística e o único mito que me acompanharam foi a "fé evangélica". A rigor, eu sei, não há uma diferença muito substancial entre essa fase e a anteior, já que numa e noutra está-se dentro da mesma estrutura epistemológica, um fideísmo voluntarista, de espectro platônico. No entanto, as diversas crenças a que estava submetido, concomitantemente, na fase anterior, não se excluíam umas às outras, ao passo que o Deus dessa nova fé era, fora-me dito, e eu crera, muito, muito ciumento. É significativo que todos, absolutamente todos os meus amigos - mas era uma meia-dúzia, confesso -, deixei-os imediatamente.

4. A tendência foi uma fundamentalização da minha fé, misturada a um pietismo evangelístico. Uma fase, brevíssima, de assédio carismático e, finalmente, uma dogmatização promissora, com acenos para uma vocação ministerial - a serviço, é do que se trata, sempre, da "fé". Essa fase durou até mais ou menos 1989, em meu segundo ano do Curso de Graduação em Teologia (nessa época, ainda "livre"). Não saberia dizer exatamente em que dia, semana, mês, o dogma desmoronou, e a crítica, bíblico-exegética, primeiramente, e epistemológica, finalmente, destruiu, iconoclasticamente, toda a estrutura, e, por fim, cada elemento do sistema doutrinário da segunda fase. Nada ficou de pé.

5. A crítica é um acontecimento - não um processo. Quero dizer com isso não que não haja uma fase de aproximação. Há. Eu não tive professores que, à minha semelhança, agora, como mestre, dissessem, como digo, as coisas abertamente, mas tive, sim, professores que, entre uma meia hora de tradição e outra, deixavam sair de seus corpos quantas de reflexões críticas, que, como a dentes-de-leão, eu pegava no ar, e guardava em meu relicário secreto - a mente curiosa da infância. Um dia, não sei qual, mas foi por volta desse ano de 1989, finalmente, o relicário rachou, e uma nuvem irrefreável de dentes-de-leão críticos invadiram a minha alma inteira. Esse é um momento específico, em que você não pode mais pensar como pensava até há dois minutos e meio atrás, e, contudo, tão difícil de datar, porque, aí, você ainda não tem a noção exata do acidente tectônico por que sua vida acaba de passar.

6. Presentemente, vivo a terceira fase de minha existência, e, talvez, tenha atingido seu ápice. Minha mente só consegue pensar por meio de três rotinas concomitantes: exegética, epistemológica e fenomenológica. É, ainda, por meio dessas rotinas que analiso minhas fases primeira e segunda, classificando-as como "alienação científico-humanista" e "fideísmo mitológico". Os mistérios? Se eles desapareceram? Não. Não, em absoluto. Mas as rotinas fiduciárias com as quais eu pensava a vida, logo, os mitos da vida, essas estão definitivamente abandonadas.

7. Fico pensando se há, de fato, alguma diferença substancial entre essas três fases - a rigor, bem no fundo, são apenas duas, uma primeira, fideísta-mitológica, e uma segunda, fideísta-científico-humanista. Não estou seguro de haver uma razão para além da simples decisão pessoal, do mero convencimento íntimo, para a transposição das fases. Não é nada que muda fora de você - o que muda é a forma como você passa a pensar o que está fora. Algo, entre você e o que está fora de você, promove essa transposição, e você passa a ver de outro modo tudo quanto está fora de você, e, por conseqüência, também a você mesmo.

8. Haverá uma outra fase à minha espera? Haverá o risco de um retorno à mitologia? Há, de fato, alguma diferença, em termos epistemológicos, entre meu presente e meu passado? No fundo, não são todas as epistemologias, jogos, cujas regras nós, os jogadores, criamos? Não é o gosto pelas regras do jogo que escolhemos o que nos mantém compulsivamente ligados a ele? Haverá, além de nós mesmos, além das regras, alguma coisa - o mundo exterior, por exemplo - que nos acrescenta segurança quanto às regras do jogo? Mas, então, por que deixei os jogos anteriores? Como, jogando-os, sendo eles o que eram e são, transformei-me a ponto de não querer mais jogá-los, a ponto de desgostar deles?

9. Talvez esse seja o problema da minha terceira (segunda!) fase - a epistemologia exegética (indiciária) e fenomenológico-religiosa não conhece uma instância de consulta - ela tem de se resolver, e não se "resolve", contudo, sozinha. As fases anteriores, no entanto, nesse sentido, eram mais fáceis, porque você ou perguntava aos deuses, ou aos pais, ou aos livros esotéricos - de algum modo, alguém, do alto da autoridade que você lhe concedia, vinha e lhe dava a resposta que você queria. Hoje, se lhe dão a resposta, você é o primeiro a pisar nela, para ver se quebra...









OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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