João foi uma pedra de tropeço da corrente evangélica. Até muito tarde do primeiro século ainda se ouvirá falar dele, e mesmo depois, e ainda hoje, mas, desde o início, o neo-judaísmo, dito Reino de Deus, tratou de livrar-se dele, ainda que incorporando-o.
O texto de Lucas não deixa por menos. Chamo atenção para um detalhe. Depois de Jesus falar bem de João, põe-se o seguinte em sua boca: "entre os nascidos de mulher, não há nenhum maior do que João; mas aquele que é o menor no Reino de Deus é maior do que ele" (Lc 7,28).
Quando essa passagem é escrita, Jesus já não vive mais - ao menos não entre eles, porque, segundo o mito bíblico, seguindo os passos de outros heróis do passado, Enoque e Elias, mas, sejamos honestos, da mesma forma que o sem número de heróis gregos e imperadores romanos, subiu aos céus.
Quando ainda esteve com os judeus e os gentios de sua época, parece que pregou o Reino de Deus. Assim como Game of Thrones tem o bordão "winter is coming", Jesus tinha o bordão: "é chegado o Reino de Deus".
No momento, pois, em que a passagem é escrita, o Reino de Deus já está instalado. É, já, uma "instituição". Mais tarde, vai dar em Roma. Ainda não era o caso, mas Reino de Deus, aí, já era "alguma coisa".
E era alguma coisa já hierarquizada: havia maiores e menores nele. Havia as colunas - Pedro, Tiago, João -, mas havia os pequenos, também. Jesus os chama de menores, na passagem que citei.
Referindo-se, então, ao "rival" João, isto é, no plano da redação da passagem, trata-se da disputa entre a comunidade de judeus-cristãos contra a comunidade dos judeus-joaninos, comunidades ferrenhamente rivais ainda na época da redação do quarto evangelho, Jesus diz que qualquer um que seja do Reino de Deus, mesmo o menor, é, todavia, maior do que João - ainda que João tenha sido enorme, gigante, um colosso.
No campo retórico, trata-se de, ao mesmo tempo em que reconhece a dívida com João, precursor do movimento de Jesus, deixar claro que não há margem para a flexibilização da norma: o Reino de Deus, isto é, o movimento de Jesus, institucionalizado, deve superar o movimento de João, e deve superá-lo porque é infinitamente maior do que ele: Jesus é maior do que João, o movimento de Jesus - isto é, o Reino de Deus, é maior do que o movimento de João e, por isso, qualquer um do movimento de Jesus, isto é, do Reino de Deus, mesmo o menor, isto é, mesmo alguém encarregado de carregar água, que seja, é maior do que João...
Da mesma forma quando, em Hebreus 1,1-2 vincula retoricamente o "Filho" aos pregadores da comunidade, Lucas vincula o Reino de Deus ao movimento de Jesus - é, já, o início inexorável da institucionalização da Igreja, da qual nunca se saiu, nem quando se pretendia reformá-la.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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