domingo, 31 de março de 2013

(2013/378) Sobre ser o pensamento filho do mundo


1. É óbvio que a percepção psicológica das coisas não pode ser a própria coisa percebida. Também não é possível que a percepção seja constituída pelo mesmo "material" da coisa percebida. Isso é óbvio, mas, acredito, é pouco levado a sério em muita argumentação idealista e, hoje, de tendência pós-moderna...

2. O mundo físico constitui-se dos elementos da Tabela Periódica e, mais abaixo, das partículas que constituem esses elementos - mas, registre-se, no nível da interação espécie humana - mundo físico, é o mundo atômico e molecular, não o mundo subatômico e quântico.

3. A vida não é outra coisa que Tabela Periódica em organização "orgânica" - minha carne é feita do mesmo material que o diamante que ainda não dei a Bel: o que diferente entre o carbono de meu dedo e o carbono do diamante é - apenas - a organização molecular.

4. O pensamento constitui fenômeno orgânico, cerebral, resultado de um estado das sinapses que, tendo atingido um ponto crítico, adquirem nova propriedade - nesse caso, a computação não apenas do corpo e do meio-esterno, mas, a partir desse estado crítico de complexidade, a computação da própria computação.

5. O pensamento não é feito de matéria física e orgânica, é emerge dessa matéria, mas é linguagem e, por extensão, consciência simbólica. Assim como a carne é física, mas é pós-física, o pensamento é carnal, mas pós-carnal: são, carbono, carne e pensamento, três estágios de uma história da matéria, história que, todavia, desdobra-se em momentos transformadores de si mesma, alcançando novas formas de existência e expressão.

6. Assim, a vida interagiu com o mundo pré-vivo no nível da estrutura celular - molecular. A celular alimenta-se de elementos químicos: potássio. O mecanismo de comunicação da célula com o meio se dá nesse nível e os mecanismo de prospecção desse meio atendem a esse nível de realidade. O mecanismo que a célula dispõe para identificar o íon de potássio não é da mesma natureza que o íon de potássio, porque já atende a mecanismos orgânicos que, todavia, tem em vista exatamente aquele íon de potássio. O modus operandi não é da mesma natureza que o íon de potássio, mas é estabelecido em função dele, é compatível com ele e é eficiente para identificá-lo. Qualquer tentativa de estabelecer um abismo epistemológico entre o íon de potássio, o fenômeno vivo de modo geral e o elemento vivo celular peca por princípio - o sujeito opera a partir de a prioris platônicos subjacentes a uma cultura dualista e idealista.

7. O cérebro faz o mesmo que a célula, mas em um nível de complexidade imensamente maior. Assim como as células dispõe da membrana citoplasmática, com a qual se comunicam com o meio, perscrutando-o, atrás de íon de potássio, por exemplo - e os encontra! -, da mesma forma o cérebro projeta-se para fora por meio dos tentáculos sensoriais: olhos, mãos, ouvidos, boca, nariz, pele... Não são os tentáculos que interpretam o meio: é o cérebro: para o que se utiliza dos órgãos sensoriais.

8. Ora, os órgãos sensoriais se estabeleceram no meio ecossistêmico em estreita interação de dependência, evoluindo lenta e gradualmente por milhões e milhões de anos - mais, bilhões de anos, se pensarmos nos primeiros organismos vivos do planeta. A necessidade da vida de manter-se obriga-a a desenvolver mecanismos de varredura do real - e, senhores, esses mecanismo precisam ser e são compatíveis com o meio. Todavia, o registro vivo-cérebro-mental dessa varredura não é da mesma natureza que o mundo físico, porque se dá no nível da interpretação e da linguagem. Linguagem que, todavia, é desenvolvida em função do meio, é compatível com ele e é eficiente em prescrutá-lo.

9. No Extremo Oriente, a relação do Homo sapiens com o meio físico foi interpretada como "ilusão" - maya. Bilhões de anos de evolução adaptativa e perfeita - tanto assim que a vida é um mecanismo extraordinariamente bem-sucedido na Terra - torna-se nada, mentira, ilusão, por força da má vontade religiosa e filosófica em face da vida: talvez se justificassem mazelas políticas, escravidão, castas,m privilégios, com essa retórica...

10. Na Grécia, Platão parece ter se apropriado dessa tradição - o mundo físico e vivo são ruins e há incompatibilidade entre a "alma" e a vida... Os cristãos gostamos desse quadro - e eis a nossa Filosofia...

11. Desde Descartes, começamos uma caminhada nova, mas ainda não chegamos lá. Ainda trabalhamos com o registro epistemológico da incompatibilidade entre pensamento e matéria, a despeito de o pensamento ser fruto direto dela: ainda não estamos de todo convencidos.

12. Mas é preciso que reconheçamos que o nível de interpretação que temos do real corresponde à consciência que, por sua vez, emerge como sistema linguístico e simbólico: ora, a linguagem, o nome de uma pedra, a própria palavra "pedra", não é a mesma coisa que a pedra, pelo amor de Deus! Isso é óbvio - mas temos de nos convencer de que não apenas posso ver a pedra no meio do caminho, posso tropeçar nela, posso tomá-la nas mãos, posso identificar sua histórica, de onde veio, do que é feita, qual a sua idade e em que categoria de estrela foram construídos os átomos que a compõem... Se isso não é a prova inescusável de que a consciência, o cérebro e a vida constituíram-se em perfeita sintonia com a matéria, bem, só pode ser má vontade e religião...

13. Quanto ao "sentido" da vida, bem, o sentido não é algo que esteja na própria matéria: o sentido é um conceito criado pela nossa própria consciência, quando, percebendo-se a si mesma como agente de um ser vivo teleológico, intencional, e observando a vida ao seu redor, ela, ainda que sub-consciente, também ela, intencional, aplicou ao Universo as suas próprias características. Nesse ponto, é bom admitirmos, não são nossos tentáculos tentando varrer o mundo - é nosso cérebro projetando sobre ele a sua gosma bio-psicológica...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Al disse...

Você já leu Bergson? Ele pensou muito essa emergência do espírito da matéria.

Anônimo disse...

Concordando com o Allison Duarte, quando Bergson diz em "Matéria e Memória" que "os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles" parece estar antecipando e respaldando sua afimativa de que "a consciência, o cérebro e a vida constituíram-se em perfeita sintonia com a matéria".

Apenas ressalvo a expressão "emergência do espírito da matéria", que me soa um tanto metafísico, quase ressurrecional, dando azo à separação entre espírito e matéria após a "emergência" daquele a partir desta - reconheço que não deve ter sido a intenção do Allison -, enquanto Bergson na obra citada e Osvaldo na postagem comentada apontam mais na oposição a essa separação, sobretudo caracterizada pela depreciação da matéria em favor do espírito.

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