quarta-feira, 12 de novembro de 2008

(2008/42) Reagindo ao post 2008/42, de Haroldo

1. Mas, ah, meu amigo Haroldo, estávamos falando de Teologia, não de Exegese. Quero dizer, o tema sob foco, o debate, a ágora, que Marcel Dettiene diz eram, também, as próprias palavras em combate, tanto quanto os combatentes e o lugar público do debate, nossa ágora, então, era a Teologia. Não a Exegese.

2. A Exegese, a meu ver, está resolvida. Sabe-se e faz-se ciência. Não estou falando da "leitura" dos textos, propriamente, porque há muita, muita, mas bota muita e muita "leitura" por aí que nada tem de Exegese, de modo que, por menos politicamente correto, ao menos de menos adequado ao gosto e à etiqueta pós-modernos, temos de diferenciar os gatos, ainda que pardos. Mas a Exegese que você - de forma rigorosamente adequada -, corrigindo-me, chama de exegese histórico-social com recorte fenomenológico constitui uma prática controlada, crítica, metodológica, rigorosa, adequada ao espírito da academia, universal, falseável, logo, testável. Para mim, nada há de mais importante do que a Exegese - se estamos falando de "textos". Todo o resto, em relação a isso, é desdobramento. Ou erro.

3. Desde já coloco-me na fila para ler o primeiro volume da tradução que faz. Irretocável o trecho que você transcreveu. Vejo-me lá dentro, em cada detalhe. Que faço, tendo escolhido como locus exegético os séculos VI e V de Judá, olho do processo ideológico e programático mais bem sucedido de que a humanidade já foi alguma vez informada - ainda que por meio de acontecimentos históricos que a própria Judá e seus mitólogos não podiam sequer imaginar - além de denunciar as nossas comtemporâneas e próprias opressões? Se não me engajo socialmente, engajo-me, a meu modo, na denúncia do poder. Disso tenho ciência - não há aula minha sem dor. E esse retorno à Exegese, quando já ia eu para a Filosofia, devo-a a você - tu sabes!

4. Sim, sim, ler a história como quem nada contra a corrente - mas também a nossa própria, a protestante! Muito fácil denunciar a impostura judaíta. Nada, nada difícil denunciar Nicéia. O mais difícil é enxergar o mesmo em nosso quintal. E não o há? Há - sabemos. O preço é não fecharmos os olhos jamais. Nós, protestantes, parimos a crítica - que orgulho! Mas também nós parimos a contra-crítica - que vergonha! Fique à vontade para dizer que "não me conhece" - mas Barth nos fez perder cem anos!

5. Mas corrijo o rumo de nossa prosa, de nossa agonística ágora - é da Teologia, essa presunçosa criatura humana, era dela que falávamos, e era dela que eu dizia que, enquanto confessional for, é impostora, se está onde não pode haver confissão. Quer-se confessional, arrebanhe ovelhas, as bestas de carga, que foi assim, ou de algo assim, que Nietzsche, por isso, assim nos chamou. E por quê? Por causa das cargas que deixamos pôr em nossos ombros, quando não nós mesmos as pomos nos dos outros, tanto faz, cristão é gente que gosta de canga, e, as mais das vezes, apavora-se quando pressente que o peso se lhes arrisca sair do costado. Mas há algo de perverso em dizer isso, porque, a rigor, aprenderam que assim deve ser, coitados, e são boa gente - bovina gente. Foi mesmo Deus quem lhas ensinou assim.

6. E eis a questão - como a Exegese pode ser crítica, deve ser crítica, o é, fez-se e faz-se histórico-social, fenomenológica, logo, iconoclasta - "escrever a história a contrapelo!" - e, contudo, como?, a Teologia, que lhe deveria ser serva, sob todos os aspectos, confessional? Um cristão fundamentalista, que afirma ser o método histórico-crítico nocivo à Igreja, e que, portanto, trate a Teologia que prega aos outros como "revelação", esse eu entendo. Mas eu, tu, nós que devoramos Exegese - banquete, não? -, que destrinchamos as narrativas como quem come costelas de carneiro ao alecrim, que reviramos pedra e pau como tamanduás à cata de formigas, que dissecamos perícopes como Jean Astruc textos e cadáveres, como?, ainda assim, depois disso, conceber uma Teologia confessional?

7. Quando digo que Lutero não sabia o que fazia, apenas usou a Bíblia para dar na cabeça do Papa, mas que, no fundo, não tinha lá intenções histórico-críticas (nem as podia, era meio cedo [para ele!], se bem que a Menocchio o tempo já não era tão cedo assim!), é disso que falo: do poder iconoclasta da Exegese em face da Teologia. Que fica de pé, amigo? Apenas o que fideisticamente, voluntaristicaamente, queremos - para traição da Exegese, contudo. Porque ou se vai pela "mão" da tradição, ou se vai pela "crítica", quero dizer, ou a tradição é mar, medium, via, âmbito, topos, locus, apenas isso, no qual vivemos, ou é porto e rumo, norma, norte, fonte e destino. É como o mito - fugir da condição mítica?, impossível!, escapar desse mito?, necessário e urgente. Sair da tradição?, não há como!, render-se, abdicar?, jamais.

8. Por isso não posso conceber uma Teologia confessional nem mesmo em mim, quanto mais na academia. Exegese já é isso: crítica e arriscada, ajeitadinha para a academia. Viu a mesa da UNICAMP em São Paulo? Mas sua irmã de carne, não. Queria que fosse. Cri, entendes-me, que era isso que significava a Teologia na academia. E, amigo, cá entre nós, o fato de ela estar na CAPES não lhe conferiu, ainda, esse status. Basta ler os artigos sobre o estatuto teórico da teologia publicados pela Estudos Teológicos 42. Se me conseguir fazer ver - e, juro!, serei todo boa-vontade -, que ali se defende Teologia como ciência, rendo-me, e calo-me, e meto-me em "meu lugar". Um, explicitamente diz que a teologia, mesmo na Universidade, é, deve ser e é natural que seja confessional (Fábio, um mestrando, cuida ter sido esse um artigo "político" - se for, não sei se é, perde em duas frentes). Outro, quase me faz crer que a esperança seria uma utopia aberta, mas, no final, a harpia confessional me quase arranca os olhos, eu, que já ia gostando do artigo, palavra de honra, enquanto o outro quer a Teologia fora da Universidade, porque ela, a Teologia, já é "saber racional público" (Habermas e suas tudo-racionalidades inventando a roda! - política, no fundo e no raso). Ou eu discordava dos três programas, ou eu não me olhava mais no espelho, entende? Temo não gostes desse meu lado, mas a Teologia está na cidade, sim, mas não é, ainda não, cidadã. Chegará a ser? Quer ser?

9. É isso que eu quero discutir - Teologia como ciência. Em Exegese, somos iguais demais, irmãos demais para gerar, por meio do tema, uma boa "agonia". Da exegese, apenas o que devemos temer é que a arrogância técnica nos contamine, e que esqueçamos que os olhos são sempre enganadores - você sempre nos alertou quanto a isso. Da Teologia, penso que devíamos muito rapidamente assassinar o Deus que ainda a nutre mitologicamente - e isso devíamos fazer rápido, Haroldo, antes que a República acabe (crês que a República é para sempre?). Na calada da noite, nos corações crentes, nas confissões, a fogueira aguarda, Haroldo, ardendo nos olhos santos da fé. Talvez, Haroldo, se matarmos o Deus que anima essa demência, talvez, Haroldo, talvez, haja, à nossa frente, um futuro diferente de nosso próprio passado. Freud inventou o mito do assassinato do Pai na Origem. É nossa hora de levar esse Nietzsche a sério, e realizar ex eventu aquele seu vaticinium.

10. E que Derus nos ajude!


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio