quinta-feira, 13 de novembro de 2008

(2008/43) Mística e Teologia/Ciência


1. Não há jeito e modo - sempre sob meu juízo! - de esquivarmo-nos da crítica radical de Marx: a religião como ópio: "la religion est le soupir de la créature opprimée, l'âme d'un monde sans coeur, comme elle est l'espirit de conditions sociales d'où l'espirit est exclu. Elle est l'opium du peuple" (Karl Marx, Critique de la Philosophie du droit de Hegel). Há, contudo, a necessidade de enfrentarmos a crítica que está contida nessa inesquivável "leitura" da realidade: a religião, enquanto fenômeno e sistema social, enquanto plataforma cultural, enquanto "mito" e "rito" significantes, só e somente só pode subsistir sob a forma de alienação humana? Insisto: a religião tal qual se atualiza, hoje, e desde sempre, fez-se e faz-se por meio do velamento do real promovido pela inoculação de uma cosmovisão heterônoma e normativa, que, conquanto experimente a adesão "livre" do sujeito religioso, o faz pelo meio da subjetivação de "um mundo" como "o mundo" (sob demandas inconfessáveis). Doravente, é "no mundo" dessa religião, conforme essa religião o descreve, que o Homo religiosus viverá. Se essa for uma religião proselitista, e, pior, imperialista, de conquista, vale dizer, evangelizadora, esse mundo será, também, aquele em que todos os homens e mulheres do planeta devem, por soberania de "Deus", viver.

2. Também Nietzsche disse algo muito apropriado a respeito dessa heteronomia inexorável da religião tal qual ela, até hoje (e para sempre?), permite ser observada. Trata-se do Aforismo 129 de A Gaia Ciência: "As condições de Deus - 'o próprio Deus não oderia subsistir sem os homens sábios', disse Lutero, e com muita razão, mas 'Deus ainda menos poderia permanecer sem os insensatos', foi o que esse bom Lutero não disse".

3. Vero. Não se trata, por cima, pisando sobre a nata, considerar que haja uma religião opiácea, enquanto haja uma outra, de outro tipo, libertadora, digamos. É verdade que, sob certo aspecto, há uma diferença de "projeto" - mas, mesmo aí, até certo limite apenas - entre religiosidades de "direita" (reacionárias, quero dizer) e religiosidades de esquerda (revolucionárias, seja dito). Mas, a rigor, uma e outra utilizam-se do discurso sobre o "sagrado" - manipulação do sagrado em ambos casos - para promoverem, cada qual a seu tempo e modo, a credibilidade e a fé em seus respectivos projetos (ambos com "base bíblica!"). Nesse caso, é crendo num Deus de direita que o cristão se faz de direita (que seja vice-versa, tanto faz), ao mesmo tempo que é crendo num Deus de esquerda que o cristão se faz de esquerda (e vice-versa). Utopias promovidas pela heteronomia, pelo mito tomado como "real". Para ambas ocasiões - espírito crítico!

4. É o modo como vejo a coisa, hoje. É por isso que, enventualmente, desagrado a teólogos de direita - porque não me compram (mais) suas retóricas de Deus (não se salvam as Sistemáticas, qualquer que seja). Mas, igualmente, é por isso que, eventualmente, aborreço a teólogos de esquerda (tenho medo dos profetas!) - porque direi e insistirei que não há diferença entre o que ele faz e o que o teólogo de direita faz: ambos laçam consciências imaturas com seu laço mágico e sagrado. Ambos projetam em "Deus" seus respectivos projetos de mundo, e, por meio de "Deus", "convencem, encantam, enfeitiçam" as massas. Ambos estão engajados em suas respectivas Repúblicas.

5. Vejam: se me perguntarem que projeto ético me agrada mais, não hesito: o da esquerda teológica, o da libertação. Mas seu projeto, a meu ver, relativamente melhor, perde totalmente a base - engajamento na direção da libertação de consciências - quando, para se implantar, recorre à mesma estratégia de alienação que aqueles a quem combatem usam. Se os fins jultificam os meios, está explicado.

6. Não estou engajado em resolver esse problema concreto. Não tenho como saber se teólogos de direita e de esquerda - reacionários e revolucionários - crêem honestamente no mito que articulam, ou se somente se servem dele para promoverem seus respectivos projetos de mundo. Nesse caso, procuro manter-me a salvo de uns e de outros, e correr cá meu próprio risco. Assim, seria adequado eu confessar que tornei-me como que aquela peten surda de que fala o Antigo Testamento, tão surda que não se deixa encantar pelos encantadores.

7. Contudo, todas as vezes que se propõe discutir a emancipação da Teologia, a sua conversão aos valores da terra, instala-se o discurso quanto à "necessidade" religiosa humana - como outro dia Jimmy disse ter ouvido de grande teólogo brasileiro: o século XIX estava errado a respeito da religião... Ora, a necessidade humana que se tem traduzido nessa forma de religiosidade necessariamente alienante (de direita, de esquerda) é mesmo aquilo de que essa necessidade precisa? Ópio? Entorpecente? Ecstase? Receita da direita: Lexotan. Receita da esquerda: Prozac.

8. Aceito, no entanto, discutir profundamente a "mística". Uma Teologia eventualmente científica - verdadeiramente científica - não abalaria a mística. Abalaria o que, então? O regime político das religiões concretas, os "mitos", tomados como "fotografias confiáveis da verdade", as doutrinas, as "morais", os "ritos", as interpretações comprometidas, viciadas. A Teologia tornada ciência constituiria um gravíssimo golpe no coração da política da religião, essa em que homens e mulheres "santos" - honestos ou não, não faz a menor diferença, nesse caso - apresentam-se como oráculos, porta-vozes de Deus, guias, gurus, mestres, luz. Um teólogo convertido, da nova safra, a primeira coisa que ele faria seria emancipar de si mesmo as fileiras de crentes que esperam dele a verdade.

9. O golpe, quero dizer, a estocada, é político. O golpe se dará no poder. Em nenhum outro lugar. Outro modelo de relação - de poder, portanto - há de se instalar. Lidemos com isso. Mas o modelo a que Nietzsche se refere - o dos "homens sábios" (o mesmo da República, de Platão) -, esse, puft!, cadê?, ele rui no momento em que sua nudez é ostentada.

10. Por outro lado, abrir-se-á uma nova estrada - a da mística (Velha Anciã Noturna). Muda e sem conteúdo, e, contudo, quérula de conteúdos, exigirá que sejam desenvolvidas novas rotinas de lidar com a dimensão mais profunda da hermenêutica humana, a de dar sentido à existência. Mas, nesse caso, começaremos como que de novo (a velha roda, aí, jaz viciada e imprestável, e o que dessa tradição há de ficar é a obviedade de que, sem roda, a carroça não anda).

11. O que há de cair, decerto - já experimentei isso - são as respostas, todas, com as quais fomos construindo nossa "tradição" (Haroldo, amigo, esse exegeta não [consegue mais] "recita[r]" a tradição - terei desertado das fileiras exegéticas?). As perguntas, essas não, essas voltarão a ecoar, a retumbar em nossos tímpanos, milênios depois de as termos respondido com mitos, antes que soubéssemos que eram assim, imaginações políticas de "homens sábios".

12. Anunciaremos, no entanto, a boa nova?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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