terça-feira, 17 de março de 2020

(2020/027) Consciência, sagrado, cultura e "Deus"

Tillich dizia que "(Deus) se faz presente em nossa consciência imediata" (Perspectivas da Teologia Protestante, p. 116). É equivocada, se não já falsa, a declaração. De nenhuma forma se pode dizer que "Deus", o deus cristão, ou qualquer outra representação divina se faça presente na consciência humana de forma imediata ou se faça presente na consciência imediata humana.

Nenhuma bebê tem "Deus", o deus cristão sem nome, ou qualquer outro deus ou deusa em sua consciência. Se, à medida que ele cresce, ninguém lhe fala sobre um deus e lhe ensina um nome ou um modo de referir-se a um deus sem nome, então essa criança, quando se tornar jovem e adulta, jamais conceberá um deus.

"Deus", o deus cristão, e qualquer outro deus ou deusa é fruto de catequese, de educação religiosa, de ensino de pai, mãe e avós. Depois, esse ensino familiar é reforçado pela osmose social, já que todos os pais de uma cultura ensinam a mesma coisa aos filhos, de sorte que, quando esses se encontram, o resultado social é o reforço da catequese informal. Posteriormente, os espaços institucionais religiosos aprofundam a sensação de onipresença e, de fato, a onipresença social do conteúdo religioso positivamente inculcado nas mentes das pessoas. O efeito é esse: considerar-se, equivocadamente, tratar-se de algo imediato aquilo que é mediado por um longo processo cultural. "Deus" é mediado.

Para um teólogo dizer algo como Tillich disse, ele tem de, primeiro, desconsiderar a História das Religiões, e, de outro, o acúmulo de informação das Ciências Humanas. Que ele tenha desconsiderado a História das Religiões, ele mesmo o confessará, como se fora um pecado, em sua última conferência, em 22 de outubro de 1965, "O significado História das Religiões para o teólogo sistemático". Depois de confessar o descuido, promete lutar com e contra a História das Religiões, depois, acrescenta, de ter luta com e contra a cultura...

O tema da presença dos deuses na consciência humana deveria ser acessado pela definição de sagrado de Mircea Eliade, que, equivocadamente, muita gente boa chama de essencialista. Eis sua definição: "o sagrado é um elemento da estrutura da consciência" (The Quest/Origens). O "sagrado", sim, é um elemento imediato da consciência, porque é estrutural e estruturante. Mas o sagrado não é o divino. O divino é uma representação particular, noológica, cultural, histórica, da potência da consciência humana. O divino é uma concepção humana. O ser humano pode conceber o divino por força de sua consciência estruturar-se nesse sentido.

Sim, o sagrado não é o divino. O sagrado é psicobiológico, uma potência da mente-cérebro humana. Já o divino, é cultural, criação milenar das culturas, o que só foi possível por força daquela potência estrutural mencionada. O sagrado poder atualizar-se na forma religiosa, mas também em formas não religiosas. Arte, guerra, esportes, sexo, tudo isso constitui-se, em parte, atualização da potência do elemento sagrado da consciência humana. Os deuses, igualmente. Para todos os fins, os deuses são como personagens de RPG, de teatro, da Netflix: os homens e as mulheres os engrendraram. A única diferença é a catequese, e é por isso que os deuses parecem diferentes dos centauros...

Tenho dúvidas se Tillich desconhecia isso. Tillich era conhecido - amigo? - pessoal de Eliade. Acho mais é que Tillich sofria do que sofre praticante todo teólogo cristão: tem de ser ruim da cabeça para apresentar sua fé, mesmo quando procura ser o menos fundamentalista possível a um cristão, o que só é possível com prestidigitação, inconsistências teóricas e éticas, e boa dose de equívocos e self deception...






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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