segunda-feira, 16 de março de 2020

(2020/026) A fraude narcisista do argumento criacionista


Há um problema incontornável no argumento criacionista, em face do qual eu me dou o direito de considerar tratar-se de uma fraude. Estava agora assistindo a uma série de vídeos sobre o Universo, e eu estava desconfiado de que se tratava de produto religioso. O conteúdo em si era absolutamente científico, e eu o podia confirmar pelo que já havia lido em vários textos científicos sobre a cosmologia moderna. A desconfiança, todavia, vinha da impostação de voz da narradora, dos adjetivos calculados, do encaminhamento da argumentação: catequese e apologia sofisticadas, mas catequese e apologia.

Dito e feito: trata-se de vídeos teológicos, produzidos com muita qualidade e planejamento, cujo último propósito é assentar o criacionismo ao lado da Ciência, submetendo-a àquele. No final, os cientistas crentes confessam sua crença no deus cristão e assentam a declaração de que as leis do Universo se explicam pela sua criação. A palavra designer é usada, e situa o projeto na órbita da doutrina do Design Inteligente.

Há um grama de lógica no argumento: quem criou as leis universais? Bem, Ilya Prigogine diria que as leis são resultado da própria história do Universo. Mas mantenhamos a mente aberta e aceitemos a pergunta crente: quem criou as leis universais?

E eis a fraude: o criacionista, essa fraude com pernas, dirá: "meu deus"...

Observe que o crente cristão está pressionado pela Ciência. O imbecilizado fundamentalista commu, não diplomado, inculto e ignaro no corpo e no espírito, esse simplesmente ignora tudo, e tem apenas uma reação grotesca diante da heresia científica. Mas o crente cristão refinado não. Esse tenta coadunar sua doutrina e a Ciência. Ele não tem como negar a Ciência, porque não é um idiota, como o são 99,99% dos fundamentalistas comuns. Ele estudou, leu livros, tem dois neurônios pelo menos, de sorte que a única esperança - sua estratégia! - é conciliar a fé e a Ciência.

Onde está a perversidade? Ele realmente não reflete, não raciocina. Ele nunca realmente levou a Ciência a sério. Seu desejo é apenas conquistar o bunker retórico da Ciência, para poder dizer aos 99,99% estúpidos que a fé é inteligente, e, a Ciência, criatura do seu deus...

Se ele tivesse levado a Ciência realmente a sério, saberia que a sua é apenas uma dentre milhares de outras doutrinas criacionistas. Se ele fosse honesto, reconheceria que a fila dos deuses criadores atravessa a esquina. As doutrinas criacionistas budistas são mais coerentes do que a cristã, por exemplo, mas o que é que o crente cristão estudado sabe disso? Nada. O crente cristão é absolutamente refratário a qualquer reflexão que possa colocar sua crença no mesmo pé de igualdade que qualquer outra. Ciência, ainda vai, que a gente escraviza à fé, mas as demais doutrinas - morte a todas!

Um criacionista honesto não concluiria a discussão criação versus "evolução", "acaso", qualquer coisa que fosse, com a declaração de que o seu deus é o criador das leis do Universo. Ele apenas diria que não podemos descartar a hipótese de um criador, de dois criadores, de cinco, de dez, de milhares, de um comitê de criadores. E então seria o caso de discutirem, como irmãos, todos os diferentes e plurais criacionistas, para descobrir quem dentre os deuses criacionistas criou o Universo. Mas não: ele sempre dirá - o meu deus criou tudo isso... Porque só existe o dele, afinal...

É um fraudador. Não há honestidade aí. Não há amor à verdade, apenas à doutrina. Ocorre com ele que aderiu intransigentemente a uma doutrina, assume-a indiscutivelmente como correta e fará de tudo para mantê-la, custe o que custar - inclusive os próprios ouvidos e cérebro...

Respeitaria um criacionista que dissesse que os criacionistas todos fizessem um Congresso para discutir todas as teses criacionistas de todas as religiões, já que há milhares de candidatos a criador no planeta. Para esses que confundem catequese sofisticada com reflexão honesta, para esses não posso destinar meu respeito.






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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