domingo, 18 de maio de 2014

(2014/475) Observações sobre o Livro de Miquéias e a origem profética do monoteísmo

O Livro de Miqueias é interessante. Seu texto é "datado", é do século VIII, truncado, um texto cheio de pedras, muito mais a encosta pedregosa e escorregadia de um vulcão do que um rio calmo e sereno.

Seu conteúdo trata da injustiça social. Basicamente, a opressão e a desonestidade, principalmente de ricos contra pobres. O homem mau é o seu alvo, e suas flechas atingem-no direta e incisivamente.

Todavia, em dois lugares aparece o discurso contra a prática não ortodoxa da religião oficial. São as passagens 1,7 e 5,11-14. Eu tendo a considerar que não são autênticos. São interpolações, acréscimos que se fizeram ao livro, para dar a ele o mesmo tom que o conjunto da crítica religiosa que caracteriza o chamado Livro dos Doze Profetas. 

Além disso, 6,1-8 me parece suspeito. Certo que a tradição do êxodo data de pelo menos o século VIII, com Amós, e a sua referência em Miqueias, posterior a Amós, não deve estranhar. Mas a referência a Moisés, Miriam e Arão...? A referência a Balaque...? A Balão...? Seriam essas tradições anteriores à redação de Números? Tenho graves reservas quanto a isso... Para mim, 6,1-8 deve ser pós-exílico...

Um problema, todavia, é que o seu conteúdo parece ser anti-sacerdotal: isso se não se tratar apenas de uma tergiversação cínica, uma espécie de demagogia: finge-se relativizar a importância do culto e faz-se que se valoriza a ética, mas, em nenhum momento, se trata de levar a sério que se desconsidere o culto, tanto quanto hoje se pode relativizar o templo, dizer que as pessoas são a igreja, mas, em nenhum caso, se trata de propor que se acabem os templos...

Para terminar, os versos final de Miqueias talvez sejam uma interpolação. Mas não estou seguro.

Resumindo: se houvesse uma prova de exegese aqui e agora, eu responderia que 1,7 e 5,11-14 e 6,1-8 são interpolações, não pertencem ao profeta, e diria que o Livro de Miqueias, originalmente, era um libelo político-social contra a injustiça e a opressão contra os pobres, a isso se reduzindo seu conteúdo, sem nenhuma referência a práticas religiosas de qualquer natureza...
Moral da história: recorrer a Miqueias para a defesa da tese da origem profética do monoteísmo ético-profético me parece inadequado.






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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