sábado, 3 de abril de 2010

(2010/289) Uma cooptação teológica de Kant


1. A Crítica da Razão Pura, de Kant, é um espinho na carne da Teologia. Em resumo, ela conclui que a razão humana não dispõe de qualquer tipo de mecanismo, processo ou operação que dê conta de qualquer coisa que não seja exclusivamente humana e histórica - logo, a razão humana está aparelhada para lidar, apenas, com a apreensão humana do que é histórico. Isso Kant tem em comum com o Romantismo - o sentido do "assombro" humano diante do Universo, e o sentido da redução do homem à "história". Nesse sentido, Kant poderia até ser considerado um dos "fundadores" do Romantismo.

2. Se - e somente se - Kant, esse Kant da Crítica da Razão Pura - for levado a sério, cai por terra, de imediato, toda e qualquer pretensão teológica de acesso à realidade não-histórica, logo, metafísica. Não há negociações possíveis. É justamente depois desse Kant que se fazem possíveis as figuras titânicas de Feuerbach, Marx, Nietzsche, Dilthey, Heidegger, Sartre - ao passo que os "grandes teólogos" fizeram somente esforço de contenção da massa crítica kantiana, com sucesso, eu diria. E a questão é muito simples: se tudo o que o homem viu e vê, disse e diz, fez e faz, tudo isso se produz na história, sob condições históricas, e é, conseqüentemente, histórico, o que foi, na verdade, tudo isso? Bem, a resposta é inequívoca: tudo isso foi e é humano, demasiadamente humano, histórico, demasiadamente histórico, inapelamente humano e histórico.

3. Parte do Ocidente levou isso a sério. Parte, não. A parte que não levou - nem leva - isso a sério, argumentou da seguinte forma: é verdade, o homem não pode, sob nenhum circunstância, chegar a sair do mundo histórico, ir até "Deus"... Mas, "Deus" pode vir até o homem! Eis, por exemplo, o argumento de Barth. O que é um argumento de dupla caracterização. De um lado, não explica, nem vai, nem quer explicar, como, se o homem não sabe nada sobre o que não for histórico e humano, pode ele saber que "Deus" veio? Ora, quem lhe dissesse algo assim estaria fazendo uma afirmação de condição histórica, não-metafísica, tratada no campo da crença e do mito. No entanto, o argumento barthiano, de resto, o mesmo que ainda freqüenta as cátedras das mais nobres unviersidades de Teologia do planeta, apropria-se da declaração de Kant para interditar a Kant uma interdição da teologia... De outro lado, é um argumento que se apropria apenas parcialmente, apenas corporativamente, apenas politicamente, da reflexão kantiana: é apologia programática.

Digressão: a seu modo, Luís H. Dreher assim descreveu o fenômeo barthiano que, a meu modo, acabo de descrever: "um crítico (de Schleiermacher) já bem tardio como Karl Barth também parece ter em geral aceito a validade do paradigma kantiano, muito embora buscasse resgatar um cnteúodo de 'conhecimento' para a fé baseando-se na revelação como uma grandeza objetiva e dada" (Luís H. Dreher, O Método Teológico de Friedrich Schleiermacher. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 19). Dreher foi acintosamente elegante com Barth. Disse o mesmo que eu, mas preservou-lhe um pouco de dignidade. No campo estrito do enfrentamento da questão kantiana, lamento, mas não posso acompanhar o gesto elegante de meu colega, porque o gesto oculta mais do que preserva.
4. A teologia espera, ansiosa, que passe logo o séclo XIX, que ele seja esquecido, que ele seja soterrado. Ela só não queima todos os livros em praça pública, porque a sociedade republicana estabeleceu agumas regras sociais. Não fora isso, não se duvide - o século XIX, desde Kant, seria varrido da memória planetária. E, como o século XIX é uma conseqüência única e exclusiva das reflexões protestantes, iniciadas no século XVI, e uma vez que o restante do planeta está alienado dessas questões - África e Ásia sequer passaram por essa região topográfica da cultura ocidental - seria muito conveniente para a teologia que o medievalismo, com todos os seus rasgos de obscurantismo, emergisse das profundezas, para onde foi lançado desde finais do século XVIII. Mas, acreditem, a guerra de religião estaria às portas - como está. As Cruzadas, mas, dessa vez, quem sabe?, ao inverso, ameaçam o planeta... de novo... O que se aprendeu? Nada. A religião ainda vive na Idade Média, e os teólogos gosta disso! É de sangue que a teologia vive... Mesmo agora, quando fala de paz e diálogo, não rasga as condições que o impedem.

5. Observe de perto as faces da teologia, enquanto ela lê essas linhas, enquanto ela preseente essa possibilidade: ela tem os olhos arregalados, as pupilas, dilatadas, o coração em taquicardia, o córtex, em êxtase. Ela morre de desejo. A teologia é uma alma medieval num corpo moderno, num odiado corpo moderno. Como no mito platônico, essa alma está presa, e sofre, e, se puder, mortifica o corpo, para voltar para o platônico e celeste mundo das Idéias... A isso os bons teólogos convencionaram chamar espiritualidade...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio