1. Não é sempre que Peroratio tem a visita de uma ilustre figura da carreira teológica. Julio Paulo Tavares Zabatiero, doutor em Teologia, enriquece a página desse blog de Haroldo, Jimmy (sim, ele existe, não é lenda, não) e eu. Gostei. Ele reagiu à minha provovação, reagi-lhe, ele treplicou. Estamos conseguindo um diálogo cordial, mais mérito dele do que meu, sempre alguma coisa entre na defensiva e na mira das jugulares. Doutor Zabatiero, cuidai de nós! Ensinai-nos a mansidão...
2. Trago o último comentário de Zabatiero, e reajo a ele ponto a ponto. Ele, em vermelho.
3. "Caro Osvaldo, o debate pode ser muito interessante, mas é preciso que os termos do mesmo fiquem claros, para não falarmos de duas coisas distintas como se fossem a mesma. Tenho poucas linhas, mas vamos lá: (1) não tenho problema algum em concordar com você em que a teologia enquanto atividade acadêmica não possa ser confundida com a doutrina ou com o dogma das instituições religiosas".
3.1 Seria bom lê-lo a respeito disso. Li seu artigo da Estudos Bíblicos 47/2, e fui muito consultado a respeito pelos alunos de Vitória, que eram, ao mesmo tempo, seus e meus, e lemos o artigo juntos. Ali, naquele ano, vão-se dois, você decidia pela saída da Teologia da Universidade, com base em Habermas e na forma de um "saber racional público" (veja que cito de memória e, provavelmente, sem erro). Lemos muito vocês três. Se, agora, você considera reconsiderar, e aceita discutir uma Teologia no MEC, mas com cara mesmo de MEC - isto é, nada de Igreja em sala de aula, seja explícita ("seminários de fundo de igreja"), seja implícita ("seminários maiores"), ficaria imensamente feliz em dialogar. Eu quero a Teologia no MEC, mas quero-a com cara de Antropologia, quero dizer, que trabalhe horizontalmente, sem apelos a transcendências estéticas ou normativas (nem Deus nem Roma/Wittenberg), se me entende. Essa Teologia tem que ser inventada - não existe, ainda. No Brasil, sem dúvida nenhuma.
4. "Porém, discordo de sua interpretação dos textos de Enio Muller e Rudolf na revista da EST. Eles não estão propondo teologias dogmáticas, nem fazendo apologia de dogmas travestidos de valor extra-religioso - mas este não é nosso tema aqui".
4.1 Peroratio e ouviroevento estão abertas a réplicas aos artigos que publiquei, criticando-os, bem como a seu próprio artigo. Se leram, e consideram que errei na interpretação, não me furtarei a publicar réplicas e tréplicas (porque, claro, reagirei - é educado fazê-lo). Contudo, insisto que a leitura foi feita mais do que uma vez, seja por mim, só, por uma turma de mestrandos em Teologia, e por outra turma de graduandos em Teologia. Robson escreveu uma crítica simples, mas certeira. Fica a porta aberta, para eventual contestação da crítica e posterior diálogo.
5. "(2) O que discuto em relação ao parecer (e fiz um texto com umas 8 páginas, se você quiser posso lhe mandar por e-mail) é que a Teologia, no mundo acadêmico, possui SIM sua ESPECIFICIDADE. No meu artigo no mesmo número da ET indiquei, por exemplo, que um dos elementos dessa especificidade é a multidisciplinaridade. Veja o caso da exegese: como fazer exegese em diálogo interdisciplinar com arqueologia, história, lingüiística, etc.?".
5.1 Antes de discutirmos a especificidade da Teologia, temos de, primeiro, decidir o que ela é. Ainda estamos decidindo se ela é "crente" ou "cética", ou seja, se a Epistemologia que ela quer usar é a de Agostinho e Tomás de Aquino, por meio do que se racionalizam doutrinas, ou a das Ciências Humanas, pós-kantianas e diltheyanas. Não há Teologia no Brasil, hoje, que se construa a partir das Ciências Humanas. Mesmo aquelas que se consideram avançadas não vão além de um conjunto mais racionalizado e filtrado de doutrinas fundamentais da fé, com o qual/as quais se lê a "cultura" - mesmo Tillich ainda é ontologia. Quanto à Exegese, ela há duzentos anos não tem parte com a Teologia. É, já, Ciência Humana. A reação conservadora de 1850, que pariu Barth, divorciou-se definitivamente da Exegese. A Teologia - é o Hans Küng quem o diz, e está certo -, faz que faz Exegese, mas não faz não - é alegoria controlada (pela confissão!). Então, temos que primeiro decidir se a Teologia quer vir para o lado da Exegese, ou vai ficar mesmo quarando ao sol com os anjos... Mas cuidado: Exegese serve só para Teologias do Livro... "Teologia" hoje não é mais sinônimo de "Teologia Cristã".
6. "Então, minha crítica ao Parecer não é em relação à interdisciplinaridade (eu prefiro, para a Teologia, multidisciplinaridade), mas o fato de que ninguém faz diálogo interdisciplinar a partir do vazio, sempre se o faz a partir de uma disciplina específica. Que o estatuto teórico da teologia esteja em debate não altera o fato de que a teologia é uma atividade crítica e reflexiva - definição do parecer para ciência. Também não altera o fato da especificidade da teologia a crença em Deus ou não".
6.1 Bem, amigo, já estamos na era da Transdisciplinaridade, que a UNESCO pena em tentar convencer as Universidades a aplicarem, mas o corporativismo é grande. Fiquemos nos termos que você propõe. Não há, Zabatiero, a mínima possibilidade de as Ciências sentarem à mesa com a Teologia que, hoje, está na Universidade. Não falo de Exegese. Falo de Teologia. Não dá. Os paradigmas são outros. Fala-se e propõe-se falar "no plano de Deus", Müeller propõe uma "visada desde fora", desde "o coração de Deus", "revelada", em "complementação" à visada intra-mundana das Ciências (e eis que se trata de um projeto para o CNPq!). Não dá, Zabatiero. A Teologia tem que arrancar o "Terceiro Olho", aquele de Lobsang Terça-Feira Rampa, confessar-se cega, como Kant nos disse cegos, e fazer meramente fenomenologia do fenômeno religioso. Desde baixo, e somente embaixo.
6.2 O campo que resta à Teologia é o da aproximação - com riscos de desintegração no nível acadêmico - à Fenomenologia da Religião. Se a Teologia aceitar esse nível epistemológico, aí sim está na hora de discutir o que é específico nela. Por enquanto, ela acha que tem alguma coisa nas mãos, mas não tem nada - é puro mito e quimera. Os diabos do XIX já disseram, e é a partir deles que a Teologia acadêmica deve se re-estruturar. Enquanto isso não acontecer, inter, multi ou transdisciplinaridade entre Teologia e as Ciências é jogo de água e óleo. Insisto: a Teologia tem que perder a fé, tornar-se cética (não atéia, que ateísmo é fé) e fenomenológica e, então, sentar-se à mesa. Não, o teólogo não precisa. A Teologia, sim.
7. "Filósofos da religião estudam 'Deus' ou o transcendente do Parecer racionalmente sem nenhum constrangimento. Por que a teologia teria de se constranger em discutir o transcendente "teologicamente"? Quanto aos seis eixos, para mim eles são um só: o da interdisciplinaridade. O eixo da teologia teria o que? Teria, pelo menos, o que se faz em cursos acadêmicos de teologia: exegese, história das religiões, teologia sistemática, etc., com todo o rigor que a teologia demanda do estudioso e da estudiosa. Obrigado pela oportunidade de participar do seu blog, e abraços!"
7.1 Zabatiero, o que justamente é "discutir o trancendente 'teologicamente'? A partir de uma doutrina? De uma confissão? Quando a Filosofia da Religião o faz, não é "Deus" que ela estuda, e, se pensa fazê-lo, sofre de algum mal qualquer. O que a Filosofia da Religião pode estudar, no máximo, é o discurso sobre Deus, a fé sobre Deus, mas, "Deus", nunca - até porque "Deus" constitui uma projeção antropológica, que a fórmula de Tillich, "Deus é símbolo para Deus", econde. Daí que a Exegese já virou ciência há séculos, porque se relaciona não com Yahweh, 'El, Baal, Asherah (adoro Asherah), mas com o que os textos bíblicos - humanos - afirmam sobre eles: fenomenologia, e pronto.
7.2 Mas, meu amigo, a Exegese não é um capítulo sequer da Teologia. Ela é uma ferramenta e uma prática histórico-críticas. Por exemplo: a Faculdade Umbandista de Teologia precisa de Exegese para quê? A Faculdade Doutor Leócádio José Correia, de Teologia kardecista, eventualmente, para Kardec, isso se ela tiver a coragem que o Protestantismo teve, a de meter a faca no Livro (por causa disso não estrebucha a Teologia até agora, ora de dores, ora de ódio?).
7.3 Positivamente, a Teologia teria de lidar com o ser noológico Deus, não com o ser ontológico. Para isso, inteirar-se do Pensamento Complexo. Edgar Morin, por exemplo, admite a realidade dos deuses. Mas não como quem afirma a existência ontológico-metafísico-"real" deles, mas como seres-de-espírito, eficientes, capazes de controlar um planeta inteiro - e até de matar. Aí a Teologia tem lugar, mas não com o "Deus" do Cristianismo. Este, é, no máximo, para as Igrejas. No MEC, até ele é um ser-de-espírito, mantido vivo pelo cérebro dos crentes cristãos.
7.4 Para estarmos decentemente na academia, temos de nos curvar à incontornável constatação da História - o que Bonhoeffer chamou "o mundo em estado adulto", o mundo pós-Dilthey, que aprendeu como os deuses são feitos, de que, como, por que. Não é possível retornar, Zabatiero. O diálogo entre a Teologia e as Ciências, o que quer o Parecer, é secundário - urgente é que a Teologia se veja a si mesma, converta-se à Epistemologia "emancipada", e re-aprenda sobre si e sobre sua possibilidade de existência - ou não - no concerto das ciências. Deixemos no passado a defesa corporativista de nossa carreira - estripemo-nos à luz do dia, com a coragem que o Tempo nos impõe. Dói, mas quando passa, sentimo-nos bem melhor.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Grande Osvaldo,
COmo você já tem visto, não sou muito bom em escrever longos comentários para blogs ...
Bem, estou gostando do nosso papo internetal. Um ponto de discordância que não vejo como mudar tão cedo está na seguinte questão (e discordar não é ruim, nem faz perder a amizade...):
1. Eu não vejo a necessidade da teologia se subjugar à epistemologia moderna da "rejeição do transcendente", nem vejo porque ela teria de ser uma fenomenologia da religião para poder ter espaço na universidade. Eu tenho participado de três associações/GTs de professores universitários (história, filosofia e estudos clássicos), e o interesse pela teologia é muito grande, só perdendo para o preconceito contra a teologia - que muitos acham que é a mesma coisa que doutrina ... Não se esqueça, caro colega, que a universidade brasileira ainda tem um forte ranço positivista! Inter- Multi- ou Trans-disciplinaridades, à parte, se uma disciplina não se auto-constitui, ela não dialoga, nem se pluraliza. Para o debate não ficar chato demais, permita-me uma séria brincadeira: você ficou muito tempo no meio batista (eu já fui batista da CBB)e sua descrição da teologia me parece válida só para a turma do jeitão batista e assemelhados. Mas, como disse, é uma séria brincadeira, para aliviar a mente e alegrar o coração.
2. Outro ponto que discordo de sua argumentação é o relativo ao papel do MEC. O MEC não define cientificidade nem estabelece como funciona um saber acadêmico. A teologia no MEC não precisa se submeter ao positivismo racionalista de certos pareceristas. Veja, e.g., música, músicoterapia, dança, artes plásticas não são ciências e têm cursos reconhecidos pelo MEC. O MEC, ao reconhecer um curso, não lhe credencia como ciência, mas o credencia como uma formação útil para a sociedade e reconhecida por essa mesma sociedade, nas suas diversas dimensões, instituições, etc. A teologia no MEC pode e deve continuar sendo teologia (no bom sentido, não no doutrinário). Assim, quando eu discuto que a teologia não é ciência (e reafirmo minha visão a esse respeito), não vejo que isso a tire do MEC, CAPES ou universidades. Ao contrário! ela tem todo espaço do mundo na universidade sem ser ciência, só vai perder se a gente começar a bancar cientista. Nesse caso, esquecemos a função de teólogos e partimos para a de cientistas da religião - e isso não é demérito pra ninguém.
Por fim, para não me estender demais, como vc tem percebido e mencionado - eu trabalho dentro da visão pós-metafísica do pensar filosófico, dialogando com Habermas, Rorty, Derrida, Caputo, Davidson e cia. ltda. Essa turma toda está revisando a sua velha visão moderna anti-religião. O próprio Rorty, por exemplo, em diálogo com Vattimo, reconheceu que dizer-se "ateu" era uma recaída metafísica. Corrigiu-se, diz ele, sou "anti-clerical" - melhorou, ficou coerente com a sua visão anti-fundacionista. Agora, o Rorty não teve espaço na filosofia, foi para a literatura na universidade norte-americana.
- Em que concordamos: que teologia não é dogma, não é conversa marketeira de igreja, não é papo de como conquistar mais crentes para a igreja. Mas teologia sem vínculo com a transcendência também não é teologia... Só pra terminar mesmo (rs): que a teologia discuta seu estatuto teórico não é confissão de ignorância sobre o que nós teólogos fazemos. É reconhecimento de que o paradigma metafísico, ontoteológico, se esgotou. Assim, como qualquer ciência, ao fim de um paradigma, há um tempo de discussão epistêmica intensa.
Espero não encher o saco de vcs com estes papos pró-transcendentais mas pós-anti-kantianos-hegelianos-americanos e batistanos ...
abs
Julio
Há que responder com calma a essa sua resposta, Zabatiero. Há algumas coisa boas, aí. Há outras que considero discutíveis. Há que se separar o que temos em comum e o que temos em discordância, quanto ao teor de sua resposta, para promovermos um diálogo produtivo - e isso você já disse.
Vou redigir outro post em atenção a essa sua resposta.
Interessante a referências às artes. A Teologia, que é, em termos pragmáticos? Estética? Política? Heurística?
Mas volto a isso,
Um abraço
Osvaldo
Postar um comentário