quinta-feira, 23 de abril de 2009

(2009/211) Gerard van Groningen


1. Paulo entrega-me uma lista (até aqui) dolorosa. Quando não me deparo com teologias de recorte junguiano, deparo-me com exímios esgrimistas do método histórico-gramatical, que se traduz num método de ir já com o peixe à pescaria. Peroratio não há de portar-se sempre de forma politicamente correta - conquanto há de, sempre, defender o direito de se escrever o que quer que seja, mesmo que sejam teologias junguianas e apologias do método histórico-gramatical. Além disso, um não pouco ilustre membro da corporação histórico-gramatical escreveu, sem dó nem escrúpulos, que o método histórico-crítico é prejudicial à Igreja (ele devia ter dito: "à minha Igreja", é verdade, mas, também é verdade, ele pensa que a Igreja é (d)ele, e, quando não, que ela deveria ser como ele pensa que ela deve ser - dá na mesma, não?). Quanto ao método histórico-gramatical, direi apenas que assim se sustenta a pobre coitada... e ela nem merecia. Não é nem que ele seja nocivo à Igreja - ele a faz.

2. Van Groningen não é bobo. Ele sabe que, para defender uma "história da revelação messiânica" no Antigo Testamento - e, com isso, não sejamos ingênuos, ele fala de "Jesus" - só mesmo com método histórico-gramatical, porque esse método faz que não vê o uso da alegoria: é um trato que eles têm, o método "histórico-(faz-me-rir)-gramatical e a alegoria. Eu penso que se deveria imediatamente assumir que o método histórico-gramatical é teológico-alegórico, e darem-se as coisas por resolvidas. Que exegeta histórico-crítico sentir-se-ia aviltado pelo fato de uma prática teológico-alegórica encontrar o messias cristão na literatura judaica? Nenhum. Mas o preço de se assumir que isso é possível com base em alegoria, eu aposto, jamais permitirá que os "biblistas" confessionais (aporia ou oxímoro?) digam a verdade.

3. Não foi, contudo, assim, desde o início. Basta que se leia Diálogo com Trifão e Apologias I e II, de Justino Mártir, um dos primeiros teólogos do cristianismo patrístico. Ali se pode ver que não havia qualquer constrangimento, à época, em se assumir, praticar e assumir que se praticava a alegoria. Justino alegoriza tudo que vê pela frente. O Antigo Testamento é um poço cujo balde que dele tira água chama-se alegoria - e Justino gira a manivela... Um sério representante da escola do método histórico-gramatical, Roy B. Zuck, chegou a escrever assim: "Justino afirmava que o Antigo Testamento era pertinente aos cristãos, mas essa pertinência, dizia ele, era percebida por meio da alegorização" (1). Zuck, um confessional histórico-gramatical reconhecendo a alegoria como fundamento da fé cristã? Há salvação para Wittemberg e Genebra?

4. É preciso ir devagar aí, para entender-se o malabarismo dessa "escola". Zuck está, aí, falando como que de "outra" Igreja. Para ele, a Igreja "verdadeira" é a reformada. O período de Justino a Leão X é uma espécie de cunha apócrifa. Assim, como pensa falar de terceiros, pode denunciar a verdade. Os primeiros cristãos, teólogos, não apenas praticavam a alegoria, como com ela fabricaram todas as doutrinas cristãs. Para Zuck, contudo, com a Reforma, tudo muda! Eis que pérolas: "durante a Reforma, a Bíblia passou a ser a única fonte legítima a nortear a fé e a prática" (p. 51) e "alegorizar é manipular o texto bíblico" (p. 52). Ou seja, Zuck quer crer - e fazer-me crer! - que a Reforma rompeu com a alegoria. Basta, contudo, recorrer a outro representante da escola tradicional, Gerhard Hasel, esse, contudo, mais honesto, ler seu Teologia do Antigo Testamento (2), e ver que, desde o início da Reforma, a Teologia Sistemática (nicênica e alegória desde o ventre) controlou a leitura das Escrituras, de modo que não tardou muito a que a exegese rompesse definitivamente com essa espécie de aggiornamento doutrinário da Bíblia.

5. Ora, o próprio Zuck escreve: "para ele (Lutero), a interpretação bíblica deve estar centrada em Cristo" (p. 30). Mas o que ele não diz é que, para o fazer, Lutero tem de, sem alternativas, aplicar o método alégórico, e, assim, encontrar Jesus em cada centímetro cúbico do Antigo Testamento - até porque a experiência mística de Lutero não é com a Bíblia, mas com o Cristo da fé (sempre nicênica). Teólogos de linhas afins, contudo, querem fazer crer que é "natural" a passagem do Antigo Testamento para o Novo Testamento, e que não é necessariamente obrigatório o uso da alegoria para o perceber. C. H. Dodd, por exemplo, escreveu um livro inteiro para o "provar" - Segundo as Escrituras. Trabalho perdido. Ele mesmo tem de gastar páginas e páginas para justificar a "criatividade" dos intérpretes do Novo Testamento: "assim, os escritores do Novo Testamento permanecem em geral fiés, no uso que fazem do Antigo Testamento, à intenção primária de quem compôs o trecho citado. No entanto - e isto é bastante natural - o sentido preciso que atribuem a um determinado texto raramente coincide com o significado que tinha no contexto original" ou "em numerosos casos, cremos, estas linhas partem da intenção real dos textos originais: são prolongadas para atingir novos resultados (...) uma obra-prima da imaginação interpretativa" (3). Basta, não? A quem Dodd pensa que convence - ah, sim, aos já convencidos: não se trata de pesquisa, mas de apologia...

6. É o argumento que, para mim, encerra a questão em face de todos, absolutamente todos, os "confessionais". Ainda que escrevam um bilhão de livros, ainda que se matriculem em um trilhão de cursos, não é pesquisa que fazem - estão à cata, sempre, de argumentos para a defesa da "fé". Estão em plena Cruzada contra a modernidade, cada um deles, na defesa da "verdade". É por isso que a crítica lhes afronta, porque os desnuda a todos, sem exceção. Van Groningen, também, nu fica, em pêlo.

7. Eu sugeriria que a posição confessional fosse franca. Que se confessasse tradição e confissão, que é o que de fato de prega!, mas, agora, sem pretender que essa confissão esteja na Bíblia, porque não está. A confissão cristã está na história da igreja. Um pouco em Paulo (mas não toda), um pouco nos primeiros teólogos (Justino, Ireneu, Tertuliano), um pouco em Orígenes e Agostinho, quase tudo em Nicéia, Calcedônia e Capadócia. Se os confessionais, como Hasel sabe, assumissem que são tradicionalistas (mas como vão condenar os católicos?), seletivamente tradicionalistas, se confessassem que Lutero bateu em Leão X, mas fez-se o XI, estaria resolvido o seu pecado gravíssimo, epistemológico, porque ninguém pode reprovar uma pessoa e/ou uma instituição por ser(em) oficialmente tradicionalista(s). Meu direito de crítica vem, contudo, do fato de que, sendo tradicionalistas, primeiro, mentem, afirmando que são bíblicos - e não são - e, depois, inventando metodologias supostamente "modernas", cujo objetivo é tão-somente dar tempo ao tempo e ver se passa a modernidade, para que retorne a Idade Média da interpretação (não estão às portas os métodos pós-modernos?, pois então...). Isso não posso tolerar. Nem devo. Nem eles, porque, do alto de sua alegoria, negam a alegoria dos outros. Péssimo uso da máxima evangélica... Espetáculo circence esse, o de confessionais, alegóricos, quase enfiando o dedo em riste no olho de confessionais outros, igualmente alegóricos, retóricas de alegorias mais verdadeiras do que as outras. Patético. E, depois, nocivo para a Igreja é a crítica...

8. É por isso, Paulo, que, conforme você me disse em seu e-mail, não encontra o nomes desses senhores em Peroratio. Mas nem pode. De que vale lê-los, se o que você quer, de verdade, é pesquisa histórico-crítica? Ler cada um daqueles senhores é repisar a tradição, é comer a comida requentada do dogma, como se ainda vivêssemos numa época em que se pudesse fazê-lo sem arrancar os olhos da cara. Estão todos lutando a luta de manter as doutrinas, e, mantendo-as, manter as posições políticas. Não é uma luta pela verdade, é uma luta pelas posições sócio-políticas. Não é pesquisa. É política. E eu tenho muito mais o que fazer do que perder tempo com essa disputa milenar. Se essa disputa é de Deus - não sejamos tolos! - ele então que arrume outros cavaleiros, porque aqui não terá sequer um escudeiro.

9. Não há escapatória, Paulo. As igrejas protestantes e evangélicas, todas, sem exceção, estão presas a um problema político muito grave, isso há já quinhentos anos. Inventaram, para fazerem-se diferentes de Roma, que, enquanto Roma se baseia na Tradição, elas - nós! - nos baseamos nas Escrituras. Mentira! Desde o primeiro momento, Lutero baseou-se em Nicéia, e as Escrituras serviram apenas de alicerce retórico-político. Assim, a Bíblia é, entre nós, meramente um suporte para as políticas de mandar e dar ordens, em nome de Deus, supostamente, mas, certamente, com base nas doutrinas denominacionais. O único modo de o fazer é forçar os textos a dizerem o que se diz que eles dizem - mas não dizem, não. Esse modo se chama alegoria. O modo de você esconder uma alegoria é empregar o método histórico-gramatical. Assim, jamais verá quebrada essa regra: é confessional?, então ele usa o método histórico-gramatical, e repete Nicéia. Nisso reside o "problema" hermenêutico protestante-evangélico. Ele não é hermenêutico, ele é político. Se a comunidade política confessional admitir que suas doutrinas são alegóricas, e não podendo, por questões de não dar o braço a torcer a Roma, alegar a Tradição, então se perde o fundamento político do controle "divino" da verdade que a Reforma inventou. O sistema rui. Logo, há de se envidar todos os esforços, todos, para mantê-lo. Contra tudo. Contra todos. Mesmo contra a verdade. E haja sermões e apologias!

10. Com o que posso, agora, retornar a Van Groningen. Suas obras têm essa função legitimadora da "verdade" (alegórica) doutrinária. Seu Revelação Messiânica no Antigo Testamento (4) não vai além disso. Seus três volumes de Criação e Consumação, publicados pela Editora Cultura Cristã, estão, mais uma vez, e isso não é necessariamente ruim, a serviço da Teologia Sistemática, uma história da salvação de recorte platônico-hegeliano - que começa "errando" pelo fato de, em lugar de acessar o conceito de criação conforme a própria cultura israelita/judaíta o articulava (construção da cidade do rei e do povo) o acessa pela alegoria cosmológico-metafísica de recorte helênico-cristão, fruto, obviamente, de um compromisso com a linha de chegada, não com as regras do jogo da leitura de textos históricos antigos.

11. Para não deixar margens a dúvidas de que Van Groningen está comprometido com uma perspectiva "teológica", e não científica, de acesso às Escrituras, basta conferir seu programa de Teologia Bíblica, oferecido no Covenant Theological Seminary. Na seção "II. Objectives", todas as dúvidas dissipar-se-ão. Resta ver, claro, quantos hão de lhe dar, contudo razão, e, assim sendo, recolho-me ao meu laboratório de pesquisa bíblica. Eu vou é na direção contrária de tais "objectives"...

12. Uma última ressalva. Não quero deixar transparecer que teólogos como Van Groningen não sejam eruditos e "cultos". É provável, mesmo, que o sejam imensamente mais do que eu. Não duvido e não se trata de sarcasmo. A questão, contudo, é que a erudição ou a "cultura" são conceitos de segunda ordem. Um homem erudito, preso à idéia-neurose de que a verdade está em sua mão, desde sempre, pelo que somente lhe resta viver a serviço de correr atrás do rabo (uma definição pouco lisonjeiora da apologia, naturalmente - no fundo, trata-se de pôr traseiros certos nas cadeiras certas), será de muito menos valia, para uma empreitada heurística, do que um homem relativamente menos erudito e "culto", mas com sede de pesquisa, com curiosidade iconoclasta, com a cabeça aberta, com uma neurose de autonomia, com um mito de emancipação. Para se mover o mundo, diz a tradição, basta um ponto fixo e uma alavanca suficientemente longa. Para mantê-lo como está, ah, para isso somam-se aos milhares aqueles que o agarram à barra das calças. Mas alguém já o disse: Eppur si muove...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

1. Roy B. ZUCK, A Interpretação Bíblica - meios de descobrir a verdade da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 39.
2. Gerhard F. HASEL, Teologia do Antigo Testamento - questões fundamentais no debate atual. Rio de Janeiro:JUERP, 1987, p. 13-26.
3. C. H. DODD, Segundo as Escituras. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 129 e 105-106.
4. Gerard VAN GRONINGEN, Revelação Messiânica no Antigo Testamento. São Paulo: Luz para o Caminho, 1995. A Fides Reformata resenhou-o.

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