quinta-feira, 23 de abril de 2009

(2009/212) Dia de Jorge...


1. Mais um pouco, muito pouco, e terão sido, já, vinte e cinco anos: só aos dez de agosto de 1984 é que ingressei nas fileiras batistas. Antes, julgara que aquele outdoor que se punha à porta daquele edifício ao lado do terreiro de umbanda de minha tia convidava para uma sessão kardecista. É que, em termos religiosos, minha mãe era de tudo um pouco, também kardecista e também umbandista, de modo que, por osmose, também eu. O outdoor do edifício convidava a beber da água da vida, e eu só o podia ler por meio de meus próprios códigos hermenêuticos. Como, nas sessões de mesa do centro espírita, havia aquele ritual de se pôr o copo a receber os bons fluidos espirituais dos planos superiores, em meu mundo, aquele convite só podia ser para a mesma coisa.

2. Assim, apesar de viver ao lado de um templo batista por uns bons anos de minha adolescência (quantas vezes lhes entreguei a bola, pelo muro, durante as peladas que disputavam), nunca o soube, nem quem eram eles, até que, por razões outras, nada relacionadas, ali entrei, naquela data. Até esse dia, meu universo era o das religiões populares brasileiras - kardecismo popular, umbandismo popular e catolicismo popular.

3. Uma coisa só me deixava assim como que exitadamente religioso: a) o pensamento de Deus, já que, quantas vezes, aos quinze anos, dormíamos, ele e eu, na mesma cama, para o que eu lhe reservava um travesseiro e um pedaço de meu lençol, e b) São Jorge, quero dizer, Ogum.

4. Não era exatamente São Jorge que me agradava. Na casa de Vovó Rosa, uma daquelas benzedeiras antigas, alguma coisa entre católica, kardecista e umbandista, sem terreiro, mas com "casa", que freqüentávamos, aquela imagem "gigantesca" de São Jorge, aquele dragão colossal, aquela lança, aquela imagem não me agradava de todo. Hoje, eu diria, não conseguia entrar no mito, utilizando-me daquela imagem. Uma menorzinha, assim, de uns parcos dez centímetros, se tanto, de plástico, vagabunda mesmo, essa eu tinha sobre a velha GE de minha avó, e, lembro-me, uma vez ou outra acendi velas, mas não a Jorge, a Ogum.


5. É que minha tia, sacerdotiza da umbanda, dissera-me, e é hábito você crer, que eu era filho de Ogum. Aí, soube que ele era guerreiro, daí que, no Rio de Janeiro, mas não em todo lugar do Brasil, São Jorge ser relacionado a Ogum, senhor também do ferro e das estradas. Não havia como eu ter, em casa, os ferros de Ogum, igual àqueles que minha tia tinha sob o altar da umbanda, com santos católicos, preto-velhos africanos, caboclos indígenas e a ferraria toda do candomblé. Assim, ía-me, tal qual podia, com aquela imagenzinha de plástico: um soldadinho a matar uma lagartixa... Pobre Ogum-Jorge, tão pequeno... Mas grande era minha fé!

6. Larguei tudo isso naquele dez de agosto de 1984. Somente agora, dezesseis da tarde, dei-me conta de que o feriado hoje é de Jorge. Olhei para o fundo do coração, para ver se batia, aí, uma nostalgia. Não, não bateu. Não, ao menos, como se uma decepção cada vez mais acentuada com a teologia confessional me pudesse fazer re-encantar-me por outrora religiosamente acalentados mitos não-cristãos. A crítica, não aplico-a, apenas, aos mitos cristãos, que abracei desde aquela noite de um sábado de agosto. Aplico-a a tudo. De modo que não me vem à mente nenhuma ingenuidade mítica de saudades de Jorge ou de Ogum. São apenas memórias de alguém que se vai adentrando às primaveras contadas de uma vida, e que deve, como não?, aprender com elas e durante elas. Hoje, bate-me no peito outro mito - Yahweh.

7. Jorge-Ogum ficou sobre a velha geladeira de vovó. Outros mitos, posteriores, também os fui deixando, lentamente. A pergunta é: quais dos mitos que ainda abraço também hão de ficar no pó da memória, à medida que o grisalho dê lugar às cãs? Não falo daquele momento final, em que não apenas todos eles, indistintamente, regressarão aos elementos do mundo, comigo a levar a bandeira, à frente. Digo desses que, agora, ainda acalento ao peito, sem o saber, mitos tantos quanto aquele de um orixá travestido em santo.

8. A tradição de Ogum também se instalou no Caribe. Lá, a figura do guerreiro também alcança, isto é, revela relações insuspeitáveis com Yahweh, conforme se expressa Burton Sankeralli, de Trinidad-Tobago, onde, coincidentemente, semana passada reuniram-se os "homens [e as mulheres] fortes" das Américas: "here the warrior - the strong - is essentially a protector. Hence Ogun or Yahweh protects widows, orphans, the weak, the poor, the enslaved...This the essence of the warrior Nietzsche failed to understand". Que surpresa encontrar ao lado de Ogum, não Yahweh, que Joachim Wash já o havia denunciado, eu o sabia, desde que escrevi Nehushtan, mas Nietzsche! De fato, aristocrático e absolutamente anti-democrático, Nietzsche não estava muito interessado na versão "protetora" do guerreiro forte. E, no entanto, eis que meu caminho na vida tem entroncamentos nos quais se podem perceber concentrações em torno de Ogum, Yahweh e Nietzsche - todos, muito fortes...


9. Talvez se avente a hipótese psicológico-antropológica de que o "tom" de Peroratio inspire-se nessa tradição da força do guerreiro... Não me atrai a imagem. Penso que, no meu caso, o "tom" deve-se muito mais a uma tendência próximo-suicida de alguém que não aprendeu a submeter-se à autoridade não-formalmente constituída, pelo fato de não ter tido um pai, um forte, um guerreiro, ao seu lado. Cada um, a seu tempo e modo, Ogum, Yahweh e Nietzsche talvez representem, no poder de atração que tiveram e/ou têm sobre mim, aquela projeção do pai, que não tive - e que quisera ter tido...

10. Seja como for, não posso negar. Fui feito de mitos. É bastante provável que desse estofo seja ainda feita a minha alma... e que indefinidamente o seja, até que se evapore na longa curva da estrada.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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