segunda-feira, 6 de abril de 2009

(2009/142) "Revelação" segurando vela...


1. Encontro e leio o artigo Teologia e Política (Francisco de Aquino Júnior, "Teologia e Política", Rever, ano 8, março, 2008, p. 92-118). Não vou entrar nos seus detalhes - o fato de o artigo pronunciar-se a partir da retórica da revelação cristã impede-me de levá-lo a sério, já que o seu tema é a relação entre Teologia (cristã e revelada) e Política (laica e emancipada). Não, o "doutorando em teologia na Westfälischen Wihelms-Universität de Münster" não se pronuncia fenomenologicamente, ou seja, como se descrevesse, distanciadamente, logo, criticamente, a relação entre uma Teologia que se pretendesse revelada e uma Política democrático-republicana ocidental: Francisco de Aquino Júnior pronuncia-se ideologicamente, assumindo, para todos os fins, essa condição da Teologia - ainda que a retórica empregada seja, na "forma" (mas não na "matéria"), "cadêmica".

2. Ainda é mais grave: fala-se, aí, de uma "ciência teológica", e, no contexto da relação entre Política ("ciências sociais e políticas") e Teologia ("ciência teológica"), chega-se a declarar:

2.1 "O que caracteriza o discurso teológico é que sua abordagem dos processos históricos, da configuração das relações sociais, da constituição das forças políticas, da produção e eficácia dos discursos ideológicos e da participação dos crentes e de suas igrejas /religiões nesses processos dá-se a partir da fé da comunidade religiosa em que ele está enraizado e é produzido e em função dela.

2.2 Enquanto as ciências sociais e políticas procuram analisar a função, o papel e a importância da religião na constituição e configuração dos processos históricos, das relações sociais e das forças políticas, a teologia procura analisar todos esses processos e a participação dos crentes e de suas igrejas/religiões nesses mesmos processos a partir da fé - no sentido de ver se estão mais ou menos de acordo com as exigências fundamentais da fé e de discernir, entre as diversas possibilidades históricas, caminhos, posturas e
ações para os crentes e suas comunidades religiosas em vista da eficácia da fé. Não existe, necessariamente, contradição entre ambas as perspectivas. Trata-se, antes, de acessos diferenciados à mesma realidade (relação teologia e política). E acessos que podem permitir, promover e potenciar o conhecimento de dimensões ou aspectos diversos da mesma realidade. Indo mais longe, ousaríamos afirmar, inclusive, que se trata de abordagens que de uma forma ou de outra se implicam mutuamente. Afinal, se as ciências sociais e políticas querem compreender realmente a função, o papel e a importância da religião nos processos sociais e políticos, não podem, sem mais, desconsiderar a perspectiva própria e específica (cosmovisão, as tradições, os interesses...) dos crentes e de suas igrejas/religiões. Por outro lado, se à teologia interessa, antes de tudo, a eficácia da fé, ela não pode ficar indiferente aos resultados reais e concretos da práxis dos crentes e de suas igrejas/religiões nos processos históricos. Tem que levá-los a sério, sob pena de se reduzir a especulações teóricas sem eficácia histórica ou, o que é mais provável, ser transformada (por comissão ou por omissão) em instrumento de legitimação ideológica de determinadas práticas contrárias à fé" (p. 93-94).

3. Logo se vê, por isso, que a relação entre a Política e a Teologia é o flagrante da intercessão de dois mundos (ainda que o artigo postule a referência da Teologia e da Política a "uma mesma realidade"): esse momento, o "encontro" entre a Política e a Teologia, acontece naquele espaço em que um mundo e o outro se sobrepõem, porque, ambos, afinal, estão pousados sobre a mesma placa tectônica (mas não a mesma "realiade", conforme a perspectiva "revelada", metafísica e sobrenatural com que a Teologia, mas não a Política, interpreta a "realidade"). No entanto, se a Teologia encontra, aí, propostas, atitudes e práticas "contrárias à fé", está desde sempre pronta para reagir à altura, para defender-se e a seu mundo. A Teologia - também essa aí - vive em outro mundo. Ela não é "daqui", nem "daqui" são seus soldados. A República, o Estado Democrático de Direito, os valores emancipados da sociedade laica, a liberdade, são são seus valores: constituem, apenas, uma instância política a que a Teologia precisa operar, porque a isso fora forçada pela conjuntura histórica. A Teologia, contudo, não há de negociar, não senhor, nenhum de seus "valores de fé". Pelo contrário!

4. É sempre na condição de porta-voz do "Reino" - o que significa que a realidade última e ontológica se soprepõe em valor à realidade histórica e humana, conseqüentemente, a Teologia, arauto do Reino, à Política -, que a Teologia fala: "o problema reside nas formas práticas e teóricas de articulação e interação entre teologia e política. Por sua própria natureza, a teologia cristã nem pode ser reduzida à política, nem pode prescindir da política. É uma teologia política, sim; mas não é política, sem mais. Por sua vez, a política tem seus dinamismos e suas instituições próprias. Mas estes nem são “naturais” nem são neutros. São produtos da práxis humana - individual e/ou institucional - e estão a serviço de certos interesses. Interesses que dizem respeito aos cristãos e às igrejas cristãs. E não apenas enquanto membros da sociedade ou enquanto força social, mas também na medida em que objetivam ou negam a objetivação do reino na história" (p. 116). A relação que a Teologia tem em vista é a defesa dos interesses da fé e do Reino - é apenas quando os interesses da Política perfilam-se aos da fé e do Reino que a Teologia estende a mão à Política. Caso contrário, a Teologia ali está para garantir a segurança da fé, a vigência do Reino.

5. E não é que não se compreenda a "relativa independência" dos dois setores da vida, porque o que está em jogo é o risco de uma Teologia "litúrgico-carismática" dissociada dos enfrentamentos político-sociais: "daí que não apenas não possam ser indiferentes aos processos e organizações sociais e políticos da sociedade, mas que tenham que agir - dentro de seus limites, de suas possibilidades e de seu dinamismo próprio - de modo a fermentar esses mesmos processos e organizações com o dinamismo e a força do reino (1 Cor 4,20). E isso sem negar a especificidade e a relativa autonomia da fé e da instituição eclesial frente a outros aspectos e forças sociais e políticas, nem a especificidade e a relativa autonomia dos processos e organizações sociais e políticas frente à fé e à instituição eclesial" (p. 117).

6. Não estou dizendo que a Teologia deveria assumir o interesse concreto desse ou daquele grupo político. Falo em termos filosóficos: o jogo da Política - a inegociável compreensão de que os valores, as regras, as lutas, dão-se entre gente humana. Mas, não, a Teologia apenas tolera a presença humana, mesmo quando é ela que fala. No fundo, é "Deus" o legitimador dos conteúdos teológicos, apesar de que se sabe, mesmo os teólogos o sabem, que o conteúdo, todo, sem exceção, da Teologia, é humano, demasiadamente humano. No entanto, porque os teólogos gostam de acreditar que o vento que sai de seus corpos constitui expressão do divino, também os não-teólogos deveriam aceitar essa retórica enferrujada, envelhecida, anacrônica e senil, a boa "política" de que a Teologia teria boas coisas a dizer.

7. A Teologia resiste, persevera, suporta, agüenta, tolera, sofre, padece, angustia - pacientemente. Talvez ela pense (e talvez não esteja equivocada!) que essa fase do jogo político, afinal, chegue a passar, e que as coisas voltem a ser como antes, como quando ela, a Teologia, era, ela e só ela, a Política, como bem ensinara Platão, em A República, assim devia ser (quando a Teologia "manda", é semre a Política que "manda", uma Política manejada por sacerdotes, para interesse de sacerdotes e, eventualmente, dos reis que os paguem a soldo - e A República não apenas sabe disso, mas legitima e sistematiza isso). Uma vez que nada na História é definitivo (tanto assim que a Teologia perdeu seu trono [mas não sua mania de rainha!]), faz sentido que a Teologia, de sangue azul e filha de Zeus, conte as horas, na esperança de voltar a dar as cartas. Se permanecer firme em sua auto-compreensão revelada, terá mantido a força necessária para retomar seu posto - posto que, não nega, ela não entregou, conformada, mas cedeu, por força da Revolução e da Luz.

8. Quando caiu a Bastilha e acenderam-se as Luzes, alguém jura tê-la ouvido, dentes rangendo: "perdi a batalha, mas não a guerra".


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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