domingo, 29 de março de 2009

(2009/123) Arqueologia e tradução


1. Is 65,18 é um versículo muito revelador. A imagem à direita representa o texto hebraico padrão (Biblia Hebraica Stuttgartensia - BHS), utilizado pelos maiores acadêmicos da Bíblia Hebraica do mundo, e publicado pela Sociedade Bíblica da Alemanha. Naturalmente que é necessário um nínimo domínio do hebraico para a sua tradução.

2. Eu traduzo:
Pois, ah, alegrai-vos!,
e regozijai-vos! - para sempre,
porque eu sou criador.
Porque eis que eu crio
Jerusalém – regozijo!
e o povo dela – alegria!

3. O texto é simples: a uma ordem (imperativo) de alegria e regozijo ("alegrai-vos" e "regojizai-vos"), segue-se a justificativa do imperativo: a alegria e o regojizo devem-se ao fato de Yahweh ser "criador". Na seqüência, explica-se por que o fato de Yahweh ser "criador" deve ser razão para que haja alegria e regozijo - é que ele, Yahweh, na condição de "criador", o que ele cria é Jerusalém e o povo de Jerusalém. A estrutura quiástica (concêntrica ou de cebola) é evidente. Os seis versos (estíquios) relacionam-se de fora para dentro, assim, 1+6, 2+5 e 3+4, de modo que 3+4 constituem o centro do quiasmo - Yahweh, criador, cria -, e 1+6 e 2+5 constituem as molduras, cujo tema é a alegria e o regojizo pela criação de Jerusalém e do seu povo.

4. Não, não é correto dizer que Yahweh cria alguma coisa em Jerusalém (versões) ou que ele cria a alegria em Jerusalém (TEB). O que a passagem diz que Yahweh cria é a própria cidade e, com ela, seu povo. É, sem tirar nem pôr, o que o Sl 102,17-19 declara: quando Yahweh constrói Jerusalém, o povo assim criado louva Yah. Nos dois casos, "criação" aparece como um tema cosmogônico-civilizatório ("criação" é construção de cidades), flagrado em pleno uso original/cultural, e, logo, perceptivelmente distante do modo como o tema será tratado no futuro, depois de passar pelo filtro teológico-filosófico das correntes helênico-judaicas. Antes que isso aconteça, contudo, para alegria de uma leitura histórico-arqueológica da Bíblia Hebraica, pode-se flagrar, ainda, o uso cultural do tema cosmogônico, por exemplo, em Is 65,18 e Sl 102,17-19.

5. A mente humana, contudo, uma vez capturada pela tradição, pela força que a tradição impõe aos sentidos humanos, controlando-os ideologicamente. Pode-se observar esse fenômeno lendo as traduções constantes das Bíblias de nossas estantes. Qual delas conseguirá escapar à força "causativa" da tradição? Um bom exercício é correr à estante, tomar à mão as versões que lá estão, e consultar as respectivas traduções. Quantas terão conseguido fugir da força da tradição que o verbo "criar", teologicamente controlado, exerce na mente do tradutor? Quantos tradutores terão conseguido simplesmente escrever o que está escrito em hebraico, sem a transformação do sentido cosmogônico original em sentido teológico derivado? Quantos tradutores terão conseguido fugir à regra do ditado italiano: traduttore, traditore?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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