
2. Hapax legomena são casos de palavras que se encontram uma única vez na Bíblia Hebraica, e que, portanto, são difíceis de determinar. O caso que me interessou encontra-se em Jó 26,13, e cheguei a ele sem a mínima idéia do que iria encontrar.
3. A rigor, Jó 26,12-13 já era uma passagem estranha, porque era de se esperar que o terceiro dos quatro versos coincidisse com os outros três. No entanto, o terceiro verso parecia deslocado. Como de fato:
Com sua força fendeu o Mar
com sua inteligência esmagou RaabCom seu sopro varreu os céus
com sua mão traspassou a Serpente Fugidia
4. Os versos a, b e d mencionam explicitamente os "dragões" aguáticos mitológicos, (Mar, Raab e Serpente Fugidia). No entanto, o verso c fala apenas de "céus". E pior, a presença de "sopro" - em hebraico, ruah, a mesma palavra para vento e espírito - leva os comentaristas a enfiarem aí a doutrina teológica do "Espírito de Yahweh", e, surpresa? (não para mim), a doutrina cristã do Espírito Santo trinitariano.
5. Para alguém acostumado com a poesia hebraica, contudo, algo de muito estranho acontece aí, porque era de se esperar que os quatro versos falassem, todos, da mesma coisa. Em pesquisa, contudo, a impressão de algo errado não garante absolutamente nada, conquanto inspire prudência. Tem-se é que descobrir que coisa estranha é essa que se postula.
6. Para minha alegria, Harold R. Cohen resolve a questão, afirmando que a vocalização e, logo, a separação das consoantes hebraicas encontra-se equivocada. O quadro acima (canto superior direito) ajuda o leitor não inicado a visualizar a questão. Cohen afirma que a segunda palavra do TM (Texto Massorético - em azul) deve ser desmembrada em duas (assim, o que era "céus", seria, na verdade, "(ele) pôs o Mar" (no sentido de que "ele capturou o Mar). De fato Yam, em hebraico, é Mar (como aparece em Jó 26,12, o versículo anterior). A palavra final, vocalizada e traduzida pelos massoréticos como "brilhante" (daí o sentido de "varrer, limpar"), constituiria, então, uma "herança" do acádico, e deveria ser traduzida como "em sua rede". Como resultado de suas proposições, Cohen traduz Jó 26,13 assim: "by his wind, he put Yam into his net". Com a correção de Cohen, agora, sim, faz todo sentido Jó 26,12-13:
Com sua força fendeu o Mar
com sua inteligência esmagou Raab
Com seu vento pôs o Mar em sua rede
com sua mão traspassou a Serpente Fugidia
7. Ah, sim, ainda há muito a cavar, muita terra, muito escombro a ser recolhido. A Bíblia Hebraica ainda está soterrada. Por isso não troco dez minutos de crítica por uma semana de tradição...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Um comentário:
Muito bom. Faz bem mais sentido.
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