segunda-feira, 30 de março de 2009

(2009/124) Há muito que cavar ainda


1. Uma das coisas mais "legais" que encontrei em minhas pesquisas para escrever minha tese de doutorado foi uma informação de Harold R. Cohen, Biblical hapax legomena in the light of Akkadian and Ugaritic (Scholars Press, 1978), livro que ainda não consegui adquirir, o que é uma lamentável pena.

2. Hapax legomena são casos de palavras que se encontram uma única vez na Bíblia Hebraica, e que, portanto, são difíceis de determinar. O caso que me interessou encontra-se em Jó 26,13, e cheguei a ele sem a mínima idéia do que iria encontrar.

3. A rigor, Jó 26,12-13 já era uma passagem estranha, porque era de se esperar que o terceiro dos quatro versos coincidisse com os outros três. No entanto, o terceiro verso parecia deslocado. Como de fato:

Com sua força fendeu o Mar
com sua inteligência esmagou RaabCom seu sopro varreu os céus
com sua mão traspassou a Serpente Fugidia

4. Os versos a, b e d mencionam explicitamente os "dragões" aguáticos mitológicos, (Mar, Raab e Serpente Fugidia). No entanto, o verso c fala apenas de "céus". E pior, a presença de "sopro" - em hebraico, ruah, a mesma palavra para vento e espírito - leva os comentaristas a enfiarem aí a doutrina teológica do "Espírito de Yahweh", e, surpresa? (não para mim), a doutrina cristã do Espírito Santo trinitariano.

5. Para alguém acostumado com a poesia hebraica, contudo, algo de muito estranho acontece aí, porque era de se esperar que os quatro versos falassem, todos, da mesma coisa. Em pesquisa, contudo, a impressão de algo errado não garante absolutamente nada, conquanto inspire prudência. Tem-se é que descobrir que coisa estranha é essa que se postula.

6. Para minha alegria, Harold R. Cohen resolve a questão, afirmando que a vocalização e, logo, a separação das consoantes hebraicas encontra-se equivocada. O quadro acima (canto superior direito) ajuda o leitor não inicado a visualizar a questão. Cohen afirma que a segunda palavra do TM (Texto Massorético - em azul) deve ser desmembrada em duas (assim, o que era "céus", seria, na verdade, "(ele) pôs o Mar" (no sentido de que "ele capturou o Mar). De fato Yam, em hebraico, é Mar (como aparece em Jó 26,12, o versículo anterior). A palavra final, vocalizada e traduzida pelos massoréticos como "brilhante" (daí o sentido de "varrer, limpar"), constituiria, então, uma "herança" do acádico, e deveria ser traduzida como "em sua rede". Como resultado de suas proposições, Cohen traduz Jó 26,13 assim: "by his wind, he put Yam into his net". Com a correção de Cohen, agora, sim, faz todo sentido Jó 26,12-13:

Com sua força fendeu o Mar
com sua inteligência esmagou Raab
Com seu vento pôs o Mar em sua rede
com sua mão traspassou a Serpente Fugidia


7. Ah, sim, ainda há muito a cavar, muita terra, muito escombro a ser recolhido. A Bíblia Hebraica ainda está soterrada. Por isso não troco dez minutos de crítica por uma semana de tradição...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Hernan disse...

Muito bom. Faz bem mais sentido.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio