quinta-feira, 26 de março de 2009

(2009/110) "Deística" - ufa!


1. Quando a gente dá aulas há muito tempo, quando a gente obtém informações em inumeráveis livros lidos, as mais das vezes esquecidos, mas guardados na memória do inconsciente, volta e meia a gente acaba vomitando, em sala, vestígios dessa memória. Às vezes isso nos coloca em situações constrangedoras. Se a memória não nos trai, até que nos saímos bem.

2. Há dois anos, falava sobre mito cosmogônico em sala, era um atalho retórico, o tema não era propriamente esse, mas chegáramos a ele, e mencionei o fato fenomenológico-religioso de que os povos do Oriente Próximo, do Extremo Oriente e, mesmo, da Grécia, tinham tradições de lutas cosmogônicas entre um deus e o dragão aquático/cosmogônico. Um aluno levantou a mão e retrucou que a Grécia desconhecia o fenômeno.

3. Bem, eu tinha aquela certeza mental do fato. Mas, maldição!, não lembrava o nome do dragão. Disse, apenas, a verdade: lembro-me do fato, sei até quem o matou, mas deslembro-me do nome do dragão - mas que há, há. A aula continuou. Não passaram dez minutos e o aluno interrompe, lá de trás: seria Tifão? Isso. Como descobriu? E ele, então, levanta a mão, mostrando um celular conectado à Internet... Eu acabara de passar no teste da memória e na prova do Oráculo!

4. Ontem de manhã, em sala, mencionei o deísmo, uma teologia propriamente inglesa que, a meu ver, responde pela particularidade política daquele país cristão: uma rainha que existe, mas não "manda" mais. Assim, o deísmo fala de Deus como o Criador que, tendo criado tão perfeita obra, não precisa cuidar dela, porque ela se vira sozinha.

5. Um aluno, imediatamente, interrompeu-me: a Igreja Anglicana, então, é deísta? Robinson Cavalcanti é deísta? John Stott é deísta? Parece-me que são teístas, não?, ouvi o enfrentamento, que, na hora, pareceu-me ser eco de declarações do próprio Robinson Cavalcanti sobre o desconhecimento geral que teriam os teólogos brasileiros a respeito da Igreja Anglicana... Não soube responder. De fato, os personagens mencionados não parecem, à luz de seus pronunciamentos, deístas. A Igreja Anglicana, como um todo, não me parece exatamente deísta. E porque, então, cargas d'água, eu "sabia" (será que sabia mesmo?) que o deísmo girava em torno da Inglaterra, e julgava-o tanto saber que propusera (não me baseio, que eu saiba, em ninguém para o dizer [Jimmy, é coisa da minha cabeça, viu?]) a sua relação com a política nacional inglesa? Despi-me: João, não sei dizer. Não diria que esses senhores citados sejam deístas. Não arriscaria dizer que a Igreja Anglicana seja deísta. Diria que o deísmo é inglês, e, enquanto teologia inglesa, nasce na Igreja inglesa. Fiquemos nisso. E nisso ficamos nisso.

6. À noite, no metrô (dessa vez, finalmente, sentado!), lendo Finley, deparo-me com essa afirmação: "a concepção de Hutcheson de casamento e divórcio, por exemplo, era cristã (embora liberal e deística, sem referência a um sacramento) e ignificativamente diferente tanto da grega como da romana" (M. I. Finley, A Economia Antiga, 2 ed., revista e ampliada. Porto: Afrontamento, 1986, p. 20). Que presente: no mesmo dia do "enfrentamento", os céus me mandam um razão para deitar-me em paz mais um sono. Francis Hutcheson fora professor de Filosofia na Universidade de Glasgow e mestre de Adam Smith - isso em meados do século XVIII. A relação histórica entre deísmo e a Inglaterra, com que meu cérebro me servi(r)a, estava confirmada. Com um detalhe - trata-se, provavelmente, de uma vertente liberal da teologia inglesa, e João estava lendo o pessoal da "tradição", um Cavalcanti, que anda desancando o liberalismo, e um Stott, conhecido por sua piedade teológica puritana. Como há vários Cristianismo(s) na História, igualmente o há nas terras da rainha... ops, do povo inglês.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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