quinta-feira, 19 de março de 2009

(2009/092) Sobre Hermes, Mercúrios e Exus


1. Sim, sim, meu amigo Haroldo - Hermenêutica é, de fato, uma disciplina maravilhosa. Gosto-lhe muitíssimo. Brinco com ela, dizendo-a ser tanto Hermenêutica quanto Mercurionêutica - ou, mais afrobrasileiramente, Exunêutica. E o Emílio, peruano, cioso de suas tradições pré-colombianas, gritou lá do fundo da sala: Manitu!, professor, Manitu!, ao que eu, rápido, emendei: Manitunêutica... As eras dos deuses, nesse campo, acabaram (salvo, claro, para as teologias-xamanologias, despudoradas), e o que nascera como reflexão sobre as "verdades" divinas, transformou-se em reflexão sobre as verdades possíveis, humanas, demasiado humanas.

2. Outro dia, em sua última (e esperada!) e súbita aparição, quase uma assombração, dessas de cemitério, Jimmy pôs a cara aqui para, dentre outros golpes de foice, dizer-me um contraditório "cético", posto dizer-me, eu, um "romântico", quanto aos céus superiores - a meu ver, de chumbo -, ao mesmo tempo que, empedernido "moderno", venatório, histórico-crítico, crente em pesquisa e objetividade. Pois só posso, mesmo, cer em pesquisa - indiciária, como bem termina você seu post (2009/91) Interpretação e Verdade. Para mim, Hermenêutica não é "literatura", nem "estética", nem "política"; não é "pós-moderna"; não é depósito de axiomas - para mim, Hermenêutica é uma ciência humana aplicada à pesquisa das rotinas gerais (biológicas, antropológicas, sociológicas e noológicas) de "interpretação" próprias da pragmática humana. Assim, não há nada que se possa fazer - nada! - sem Hermenêutica.

3. Eu lamento profundamente, muito mesmo, que a câmara das Ciências Humanas desde onde emergiu a moderna configuração da Hermenêutica - Schleiermacher, Dilthey, Heidegger, Gadamer - tenha abandonado o trilho mais biológico do primeiro e mais histórico do segundo para cair na tentação pós-moderna de Gadamer, na prática, uma praticamente dissolução das rotinas objetivas de interpretação, logo, de conhecimento, já que essa Hermenêutica vattimoniana junta a cabeça ao rabo da cobra, fazendo do "conhecimento" um "oroboros" tautológico, uma prisão dentro de si mesma que, em última análise, não explica nada, nem mesmo por que meios o homem saiu das cavernas, se o que fez era repetir-se a si mesmo o tempo todo, preso em seu "horizonte de sentido"... Incomunicável, morre o não-nascido...

4. Não sou, contudo, de lamentar a vida toda, nem sequer de medir-me pelo desvio que a cadeira que abraço tomou. Não é por que a Hermenêutica européia encantou-se com Gadamer, muito menos porque certa corrente estadunidense enfeitiçou-se com Rorty, que eu, estudante, pesquisador e professor de Hermenêutica hei de orientar-me a mim e de orientar a meus alunos por meio desses caminhos repletos de contradições e aporias - conquanto deles informe a todos, como quem avisa, olha, cuidado, tem uma cobra aí. Não! Fico, como tenho dito e insistido, com Peirce, com Ginzburg, com Apel, com Losurdo, com Mészáros - com Morin.

5. Para mim, Haroldo, seu parágrafo oito me define: "somente a pesquisa indiciária conseqüente é capaz de evidenciar as falácias das verdades 'estabelecidas'". É uma definição crítica da Hermenêutica, conquanto apenas um esboço de sua funcionalidade. Em mim, meu amigo, antes de tudo o mais, a Hermenêutica é uma defesa, uma vacina, um antídoto - contra as "verdades" estabelecidas, e, é bom, sempre, que se diga a frase completa, sujeito e predicado: "as verdades estabelecidas pelo poder, seja ele qual for". Já disse uma vez: "Tradição, teu nome é crime".

6. Por isso "adoro" Hermenêutica. Ela pesquisa as rotinas de conhecimento, as condições, os meios, os limites, as caracecterísticas, os conteúdos, os princípios, as regras, os critérios de verificação, os regimes. Ela, hoje, tem raízes no corpo - xô, Platão!, xô! -, na mente - xô, Agostinho (dos infernos) [entre parêntesis, para tornar opcional a sua instrumentalização sintática], xô! -, na cultura, na sociedade, na história - na matéria, até! Sobretudo ela não vaga mais, fantasmática, no limbo da metafísica, mas opera "em situação", em contexto pragmático, porque não há conhecimento humano que se possa operar fora da teleologia que o estabelece - o ser humano é intencional, sempre.

7. Invejo-o, meu amigo. Nesse semestre não leciono Hermenêutica. Bem, leciono Epistemologia. Não é a mesma coisa, conquanto sobrevoem partes do mesmo território. Mas tenho aprendido a experimentar prazer também com essa boa menina - dar alguma surra em Platão me causa um estranho prazer selvagem, talvez fruto do radical "wald" de meu nome... Além disso, cabem-me duas disciplinas de Exegese - e, aí, meu amigo, na Exegese, na prática da interpretação de um texto duas e meia vezes milenar, posso praticar, posso ensaiar o jogo dos riscos de dizer, de tirar da sepultura do tempo uma consciência objetivada. É bom quando o conjunto de nossos estudos converge para uma tarefa tão deliciosa.

8. Divirta-se, amigo! Beba até o último gole dessa taça...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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