segunda-feira, 9 de março de 2009

(2009/071) Ainda uma reação a "Apesar"


1. Haroldo, você escreveu: "apesar da crítica necessária, da hipocrisia, da ilusão, do comércio e das trocas simbólicas, ações de amor têm seu valor em si. Apesar e em meio a tudo isso - soa piegas, eu sei -, pessoas amam(-se) de verdade" (Haroldo Reimer, (2009/067) Apesar, § 7). Destaco: "pessoas amam(-se) de verdade".

2. Você quer que essa declaração tenha valor "apesar da crítica necessária, da hipocrisia, da ilusão, do comércio". A "bola" da críica, levantara-na eu. Seu post referido é uma reação a ela, com o que você concorda - "crítica necessária" -, mas com uma ressalva: há, sim, pessoas que amam verdadeira e sinceramente, a despeito da situação.

3. Bem, Haroldo, a rigor, não discutimos sobre o amor, nem sobre pessoas que amam ou não amam. O assunto era bem outro. Falávamos sobre pessoas que se dedicam (amam, fazem caridade) ao "próximo", motivadas, a isso levadas, premidas, pela "idéia de Deus". A discussão não contrapunha pessoas que não amam, ou que amam falsamente a pessoas que amam verdadeiramente. Nossa conversa contrapunha pessoas que amam, capturadas pelo próprio objeto amado, a pessoas que "amam", coagidas a tanto por um pathos religioso - a idéia imperativa de Deus.

4. Faz diferença, não faz? Penso que sim. O amor não é uma relação unilateral, ela é uma relação "objetiva", nos termos da qual eu sou objeto para o ser que amo, e ele é meu objeto, ou seja, eu e o objeto amado nos pomos em relação direta, pulsional, passional. No caso do amor religiosamente motivado, a relação não é direta - o que A faz em relação a C, faz por causa de B. É como se eu devesse amar Bel porque Deus quer (com o corolário oculto de que, se Deus não quiser, Bel não será por mim amada).

5. Que haja pessoas que amam verdadeiramente, creio. E creio, também, que, se nos aproximarmos dessas pessoas, e analisarmos esse caso de amor, veremos que não há nenhum dispositivo exterior a ela, à relação, a eles, aos "amantes", que seja a razão e o motivo desse amor. E, se há, não é, de fato, amor.

6. Acho, Haroldo, que o "fundamento" Deus do amor foi, historicamente, superado pela legislação. A "lei" organiza as relações sociais, "estabelecendo" o básico do trato inter-pessoal. Numa sociedade moderna, é a lei quem prescreve os deveres e os direitos do cidadão, seja em face do Estado, seja em face da sociedade como um todo, seja em face dos indivíduos. Como o Estado moderno assumiu o "lugar" - bem como as prerrogativas - que a "Deus" cabiam na sociedade medieval e teológica ocidental, não é mera coincidência que a legislação tenha ocupado o lugar determinante do ordenamento social mediado.

7. Todavia, o Estado não pode prescrever atitudes no nível da relação imediata, do amor gratuito, da relação sensível e sensorial. Pode, sim, estabelecer obrigações e deveres, aos quais hão de corresponder penalidades. A teologia do amor, assinalando "Deus" como fundamento do amor, funcionava da mesma maneira.

8. Já a doação gratuita, imediata, objetiva, relacional, ela nasce sem a coação de um "dever" - ela é a materialização de um constrangimento. Não é um dever alheio, estranho, uma lei, um mandamento - é um constrangimento da face exposta do outro, cujo apelo não vem do "Outro" (se vier, não é o outro que me constrange, mas o "Outro"), nem da lei, mas da nudez ineludível do outro. Esse é um amor diferente daquele.

9. Nem seria, talvez, Haroldo, o caso de pensarmos que, para o faminto, tanto faz se ele come pão, o pão que lhe dou, porque lhe dei, tendo sido constrangido a tanto por Deus ou pela lei, ou que lhe dei por gesto gratuito ou por força da objetividade de sua face incontornável. Como não faria? No primeiro caso, não é a fome do outro, o outro em-si, que me constrange: não é ele o meu "valor", ele é tão somente um checkpoint para a "obediência". Ele não existe, então, como "pessoa", à luz desse fenômeno. No segundo caso, ao contrário, é nele que eu tropeço, porque é ele quem se põe na minha frente, ele e eu, sem Deus, sem lei, o encontro insofismável entre duas pessoas, a ontologia humana rasgada e escancarada.

10. Ah, Haroldo, se eu disser a Bel que a amo porque Deus quer, hei de ofendê-la profundamente. Ela há de considerar um favor que eu lhe faço, que Deus lhe faz. Para alguém desprovido de amor-próprio, do senso de dignidade, talvez fosse, mesmo, de um favor que ela julgasse precisar. Mas, para Bel - e quero crer, para o conjunto das pessoas que não se permitem enxergar sob a ótica da maldição e do "pecado", ah, elas mesmas, enquantgo pessoas, é que são dignas do amor e do cuidado. E não hão de negociar migalhas caídas à mesa. Não mesmo. Migalha de amor não é am or - é ofensa ontológica.

11. Com o que saltamos para a questão fundamental: a retórica de Deus como fundamento do amor esconde o fato histórico de que foi "Deus" - a rigor, a teologia na qual essa idéia jaz cativa - quem privou de amor próprio um conjunto enorme de pessoas, que, porque desprovidas de amor-próprio, de senso de dignidade, sentem-se beneficiadas para além de seu mérito e valor por qualquer migalha de amor, seja de Deus, seja da sociedade, seja do Estado, seja do concidadão. Talvez, Haroldo, a manutenção da retórica do amor - e da libertação, ouso dizer - fundamentados em Deus seja um reforço paradoxal para a teologia da "falta" humana, de sua condição "menor" em face de Deus. Um Deus que, primeiro tira, para, depois, dar. Uma teologia que primeiro pisa, para, depois, levantar. Como o Yahweh de Nm 12 - primeiro faz leprosa a moça, para, depois, deixar que ela se junte ao acampamento. Amor que traz, sob o paramento, a ameaça do desamor à espreita.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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