sexta-feira, 14 de novembro de 2008

(2008/45) Sherlock Holmes - Carlo Gizburg disse que pode!

1. "Oi, bum, bum, bate coração, oi, bum, coração pode bater"! No momento, experimento brincar de Sherlock Holmes. E minha brincadeira já chegou à Alemanha!

2. Explico. Primeiro, o pano de fundo teórico-metodológico: em seu clássico artigo - "Sinais: raízes de um paradigma indiciário", Carlo Ginzburg defende a identidade teórico-metodológica entre a atividade de Sherlock Holmes e a medicina, a história e a investigação forense (e eu, rapidamente, acrescento: a exegese! [se histórico-social com viés fenomenológico, um refinamento da exegese histórico-crítica, mas, a rigor, ainda histórico-crítica]). Ele vai mais longe - todas essas atividades desenvolvem-se na dimensão das atividades venatórias, isto é, dos caçadores: habilidade e capacidade de "ler" os rastros da caça e do predador, arte e técnica que se confundem com a aurora da espécie humana. Adoro isso. Recentemente, Gizburg voltou à carga, escrevendo Relações de Força.

3. Agora, exponho a origem da brincadeira. À brinca? Não - à vera. Em minha Tese de Doutorado, depois de um relativamnte longo tempo absolutamente concentrado nas narrativas de "criação" da Bíblia Hebraica (lido com elas desde 2003), e, principalmente, depois de analisar longamente as ocorrências da raiz br' (de onde "sai" o verbo "bará", de Gn 1,1), concluí que o seu sentido - mesmo na Bíblia Hebraica - era, basicamente, "cortar/construir". Cada ocorrência dela se podia tratar, naturalmente, a partir desse "sema". Daí, inferi, indituvamente, que a raiz sofrera uma "evolução" cultural, que se podia esquematizar assim: "cortar - esculpir - construir - criar".

4. Um problema. Aliás, dois. Um: o conjunto (no que diz respeito ao que eu conheço) integral da literatura especializada, internacional, no século XX (inteiro?) dizia algo muito diferente. Na Bíblia Hebraica, há três raízes (homônimas) br'. A que se refere à "criação", cujo agente é apenas 'Elohim, não tem relação com a raiz br' que significa "cortar" (na Bíblia Hebraica, nesse caso, "só" as ocorrências de Piel). Dois: meu orientador disse que, à luz da literatura internacional, eu não poderia afirmar o que estava afirmando. Salvo se encontrasse base sólida para o dizer, e, assim, contestar a "tradição" (nesse caso, "tradição" já, na prática, "normativa"). Que desafio!

5. Muni-me de coragem. E fui investigar. Sherlock Holmes. Eu tinha, então, dois meses para apresentar a Tese. Estava frito! Como, em Mesquita, meu Deus, eu poderia encontrar bases para enfrentar cem anos de erudição, de erudita tradição? Decidi começar pelo óbvio - Gesenius. Comecei o trabalho de detetive. Descobri que Gesenius, no início do século XIX, nada "sabia" de três raízes. Para Gesenius, até a metade do século XIX, filologicamente, br' significava, primeiro, cortar, depois, esculpir, finalmente, por extensão metafórica, criar. Exatamente o que eu dizia. Descobri mais. Que desde 1755 se "sabia" disso - léxicos em latim, de Simonis, já afirmavam, filologicamente, exatamente o que Gesenius dirá na era de ouro da filologia clássica. Encontrei outros, do mesmo período (1750 - 1850). Unanimidade filológica, então.

6. Ora, mas o que aconteceu entre lá e cá? Bem, descobri que, a partir de 1850, uma reação conservadora ocorreu. Encontrei léxicos e dicionários reclamando de que "querem usar os árabes contra nós" (referindo-se às fundamentações filológicas de Gesenius e Simonis), a partir do que "corrigiam-se" os verbetes de br', ainda, contudo, constituídos por uma única raiz, afirmando que seu sentido era, primeiro, criar, e depois, cortar. Aí, "Deus" já ia se tornando o agente operador de br' como criar. As traduções, contudo, de Gesenius, até aí, permaneciam fiés ao original.

7. Finalmente, o que pode re-encenar a velha "fraude santa", aquela de Josias e Hilquias (mas ainda resta fechar a investigação para o dizer com segurança), o século XX abre a cena léxica veterotestamentária ostentando volumes e volumes de léxicos, dicionários e comentários com três verbetes para três raízes filologicamente distintas - br' I, br' II e br' III. Esse sistema fora "inventado" entre meados do século XIX e início do XX - quando?, por quem? O porquê era óbvio: preservar a leitura tradicional, teologicamente significativa, herdada pela "tradição", agora "ameaçada" pela intromissão da Filologia: Israel, a Igreja, são idiossincrasias, singularidades - blasfêmia compará-los a o que quer que seja (cf. o excelente artrigo de Walter Brueggemann, The Loss and Recovery of Creation in Old Testament Theology)! O século XX todo pôs-se a esse serviço. O auge do processo, o símbolo dele, são as "traduções" do léxico de Gesenius: no que diz respeito ao verbete br', nada do que Gesenius dissera se lê, agora, lá. A reação conservadora optou pela "Teologia", contra a Filologia.

8. Agora eu já tinha como afirmar o que eu, enquanto exegeta - não inventaria a roda (Simonis, parece, tem o mérito), mas a desentortaria! - via na Bíblia Hebraica, e isso apesar de "tão grande nuvem de testemunhas". Defendi a Tese. Fui aprovado. Ludovico Garmus brincou - "esse menino quer mudar nossos dicionários...". Sim, quero, sim.

9. Mas resta uma tarefa: quem foi, em nome de Deus, que pela primeira vez criou a estratégia de institucionalizar um significado "teológico" (confessional e tradicional, seja frisado!) para a raiz br', depois do trabalho filológico dos séculos XVIII e XIX? Não consegui descobrir. Minhas fontes não confessavam - e não ia submetê-las à tortura.

10. Mas estamos na era dos e-mails. Ousei mandar um para o Prof. Dr. Erhard S. Gestenberger, de Marburg. Mandei-lhe um longo artigo, com 18 fac-símiles de léxicos dos séculos XVIII, XIX e XX, em que denunciava a operação teológica aplicada à filologia de br'. Pedi-lhe que tentasse, por favor, encontrar o teólogo (a teóloga?) que "achou o livro da lei". Ele aceitou o desafio e está me ajudando. Já falou com a especialista em língua hebraica, de Marburg - mas ela não saberia especificamente nada a respeito, exceto um um artigo, de 1913. Falou com Rainer Kessler [mundo pequeno, não, Haroldo?] ("me falou, que na 3a edição do dicionário de Gesenius [1828; ele ainda estava vivo] este ainda tem só uma raiz para br'", ele disse), e os dois estão tentando seguir as traduções/edições de Gesenius, desde o século passado, para encontrar a primeira vez em que se criam as três raízes. O artigo de 1913 não tem nem na Biblioteca de Marburg ("o artigo de Boehl na Festschrift de R. Kittel em 1913", ele disse [F. Boehl, Bara als Terminus der Weltschoepfung im alttestamentlichen Sprachgebrauch. Festschrift R. Kittel, BWANT 13, 1913, 42-60]), mas que ele vai tentar localizar. Meu coração está acelerado! Não aceitou assinar o artigo comigo - disse que terá feito pouco, e se contentaria com a menção a seu trabalho em nota. Tê-lo-á!

11. Aguardem novos movimentos dessa partida, a meu juízo, sensacional. Marcel Dettiene, em Comparar o Incomparável, usa uma expressão para referir-se àqueles que podem, eventualmente, "ver" coisas, como que entre as folhagens: "para quem sabe prestar atenção". Gastei tanto tempo lendo as ocorrências de br' que acabei "prestando atenção" mesmo? Gerstenberger disse-me que o artigo parece ter razão, e que, de fato, a "tradição" de apresentar br' como três raízes atenderia, sim, a um projeto teológico de salvaguarda da especificidade da "fé" israelita - por tabela, "cristã" - em face de outros povos e tradições. Se ele achar, se de qualquer modo, eu acabar achando, por meio dele, por meio de alguma outra contribuição fundamental, quem, quando e em que publicação introziu-se essa, digo?, "fraude santa", terei confirmado a mim mesmo - a outros, igualmente? - que a "tradição" é uma dimensão ambígua da vida humana - ora é mão que afaga, ora é mar que afoga. Qui prodest?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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Atualização do post

12. Hoje, 14/11, o professor Gerstenberger me responde - quanta atenção! Cito-o: "Caro Osvaldo, hoje tentei de novo encontrar o "Festschrift fuer Rudolf Kittel", de 1913, com o artigo sobre br' escrito por F. Boehl (not Loehr, como pensei!). Depois de uma boa pesquisa na Biblioteca da Universidade de Giessen, de repente encontrei o livro no catálogo, mas infelizmente pertence a uma parte velha da antiga biblioteca teológica, que fica em outro prédio da universidade, e não na biblioteca moderna de Teologia. Que chato. Fui lá, mas eles me disseram que levaria três dias para tirar o livro dos "estoques velhos", e eu vou viajar já no próximo domingo! Então, só possp continuar a correria pelo livro antigo quando voltar dos Estados Unidos, Nov. 29. (...) Tudo de bom, shalom, Erhard".

13. Sim, sim - esperemos. Boa viagem, professor!

4 comentários:

Peroratio disse...

Osvaldo

com o seu estudo sobre Genesis 1,1-3, especialmente sobre o verbo bara' você marcou um gol, sobre o qual ainda vai se discutir se foi com o pé ou com a mão. Mas tanto faz. O gol está feito!

Haroldo

Peroratio disse...

:o)

Se foi mão, foi com a de Deus, ha ha ha...

Maradona que me perdoe, Haroldo, mas gol com a mão não vale! Nem se foi Deus! Tomara que meu gol seja de pé, mesmo, porque seria chato à beça perceber que o que me parecia tão óbio era, apenas, bola de sabão.

Há muita pedra e pó para tirar de cima de Gn 1,1-2,4a. Estou escrevendo um artigo sobre raqya' (firmamentum). Depois, enfrento, quando tiver fôlego, 'Adam (dou um braço: é o rei).

Ô melhor é que isso é, para mim, pura diversão. Pena que não dá uns trocadinhos também, he he...

Osvaldo

Elias Aguiar disse...

Parabéns, Mestre!

Parece-me que não é tão simples
para o paquiderme sacudir a
pulga...

Abraço,
Elias Aguiar

Peroratio disse...

Elias,

num certo sentido, é fácil, sim. Noutro, não. Pelo lado fácil, basta a indifrença, a transparentização - você fala, fala, e - simplesmente - não é ouvido. A pulga, puf!, cai...

Mas, se na era dos livros, disseram-se coisas - e elas ficaram, ainda que muitos quisessem fazê-las desaparecer no ar, quando mais na era da Rede...

Só estou esperando que alguma coisa aconteça comigo ainda em vida... De qualquer modo, mais cedo ou mais tarde...

Um abraço,

Osvaldo

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