1. Se eu me ativer à teologia cristã, o único livro que realmente considero - dentre os que já li - útil e promissor, é o Teologia a Caminho, de Hans Küng. De modo simples, a sua tese pode ser resumida da seguinte forma - a teologia (cristã) tem de ser histórico-crítica. Essa, ainda segundo Hans Küng (e eu a apoio), é a única que "deveria" estar na Universidade. É uma declaração radical, mas, no fundo, ela significa que a teologia ou é ciência, ou se torna ciência, ou não tem lugar nem voz na Universidade.
2. O próprio Hans Küng, entretanto, me deixou completamente desnorteado, e frustrado, com seu livrinho Por Que Ainda Ser Cristão Hoje? Disse que, depois de cento e cinqüenta anos de metodologia histórico-crítica, obtidas foram muitas informações "confiáveis" a respeito do Jesus de Nazaré - e essa é a razão fundamental pela qual "hoje (século XX/XXI), alguém, cidadão dessa época crítica, "ainda pode ser cristão".
3. Por que eu fiquei desnorteado? Bem - quer-me parecer que a única hipótese segura a respeito de um Jesus histórico é que ele teria sido qualquer coisa que não aquilo que Lucas e João dirão dele. Vá lá - que tenha se apresentado como messias (e messias judeu!), e que tenha sido acatado por uns e desacatado por outros nessa condição, isso pode constituir fato histórico - nascer de virgem e ser um super anjo um um ser divino, quero crer tratar-se de mitos desenvolvidos pelas comunidades de transmissão dos "querigmas". Ora, Jesus ter-se crido e ter encarnado o papel do "messias" judeu não o faz um Cristo da fé. Esse Jesus histórico é outro - não é o mesmo, os mesmos, Cristos da fé da história da recepção da "fé". Duvida-se? Sempre é bom duvidar.
4. O que me causa estranhamento é a percepção de que a busca pelo Jesus histórico esteja ligada a uma ideologia de fundo - se, de um lado, conduzir a pesquisa, partindo do Cristo da fé, e retornando ao Jesus histórico, se poderia depurar a última imagem dos acréscimos teológicos, traditivos, polêmicos, levados a termo pelas comunidades de fé dos cristianismos primitivos, de outro, o Jesus histórico resultante "ainda" constituiria a mesma "pedra" fundamental da fé cristã. Ou seja, o Jesus histórico é apenas um Cristo mais perfeitamente configurado para a fé contemporânea, mas, para todos os efeitos, a mesma realidade teológica.
5. Procede? Qui prodest? Pensemos, rapidamente, em Abraão. 1) Ezequiel reclama que "aqueles moradores das ruínas" alegam que a terra é deles, porque fora de Abraão, e, sendo eles, descendentes de Abraão, a terra é, então, deles; 2) Em Ex 6, Yahweh confessa a Moisés que Abraão não o conhecia, mas ele, Yahweh, já era o deus de Abraão, sendo que, contudo, conhecido por este como El Shadday; 3) Em Gn 12, Abraão é descrito a erigir um altar a Yahweh!. Ora, aí há um "Abraão" da fé (fé do templo - da golah), um Abraão da fé (fé do povo da terra) e um Abraão (eventualmente) histórico. Nos termos da fé do povo da terra, Abraão era adorador de outro deus - El Shadday (eventualmente, até, uma deusa, como se quer algures). Para a golah (os judeus "cativos" da babilônia), Abraão era um entrave a seus planos de reapropriação das terras perdidas. A solução é trazer Abraão para dentro da fé oficial - Abraão é cooptado. Preço: tornar-se javista. Eis Ex 6. Com o tempo, a conta de chegada de Ex 6 torna-se "tradição" - Abraão é javista desde que sai da "sua terra". Pode-se retroprojetar Yahweh até Enoque (Gn 4,26), e naturalmente, desenhar Abraão como um seguidor de Yahweh.
6. Pergunto: trata-se, aí, em cada caso, do mesmo Abraão? A investigação histórica pelo Abraão histórico faria/fará dele um Abraão equivalente ao Abraão da fé do Pentateuco? Ora, o que se constrói por meio de uma ideologia, só subsiste dentro dessa ideologia - fora dela, dilui-se, e retorna a sua condição pré-ideológica - eventualmente retornando à ideologia original. Não resisto - tudo quanto é sólido, desmancha-se no ar...
7. Não tenho nenhuma segurança quanto a crer ser possível reconstruir um Jesus histórico. Gostei muito de ler Joaquim Jeremias (que Edward Schillebeeckx, de quem Hans Küng disse ser, além dele mesmo, o único teólogo que praticaria teologia histórico-crítica, se serve, mormente quanto ao tema "abba"). Depois de um período de desjudaização de Jesus, levado a termo pela nata da exegese e da teologia alemãs (até onde o programa de demitilogização de Bultmann não tem fundamentos "nazistas"? Perguntem ao André Chevitarese!), torna-se mais compreensível o trabalho de um vida, como o de Joaquim Jeremias, que faz o Jesus histórico voltar a ser o judeu que, evidentemente, foi. As Parábolas de Jesus e Introdução ao Novo Testamento são obras respeitáveis - e as recomendo. Insegurança a parte, contudo, penso ser muito seguro afirmar que, por trás do Cristo da fé, o Jesus histórico nada tem a ver com o Cristo da fé, e a retroação da mística da fé ao Jesus histórico só é possível por fideísmo voluntarista, e, nunca, jamais, em tempo algum, por meio da aplicação da metodologia histórico-crítica - nem se Hans Küng, eventualmente, afiançar-no-lo.
8. Ora, a fé é auto-suficiente. Polêmicas, catequeses e apologias é que demandam silogismos viciados, argumentos tortuosos, convencimentos mágicos. Uma fé plácida e ciosa, apenas crê. Quer-se crer que aquela pessoa história, humana, demasiado humana, o Jesus histórico, seja o ovo natural, ontológico e teológico do Cristo da fé? Que seja. Mas, e isso é óbvio, nenhuma ferramenta histórico-crítica o demonstrará. O máximo que conseguiremos é construir uma hipótese plausível sobre uma provável configuração histórico-social daquele Jesus. E essa reconstrução plausível, se for usada para tão somente substituir, de forma mais purificada, mais depurada, mas burilada, o Cristo da fé - nicênico até a próstata -, eis meu veredicto: tanto esforço, tanto esforço, os montes entraram em trabalho de parto, e pariram um rato.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. O próprio Hans Küng, entretanto, me deixou completamente desnorteado, e frustrado, com seu livrinho Por Que Ainda Ser Cristão Hoje? Disse que, depois de cento e cinqüenta anos de metodologia histórico-crítica, obtidas foram muitas informações "confiáveis" a respeito do Jesus de Nazaré - e essa é a razão fundamental pela qual "hoje (século XX/XXI), alguém, cidadão dessa época crítica, "ainda pode ser cristão".
3. Por que eu fiquei desnorteado? Bem - quer-me parecer que a única hipótese segura a respeito de um Jesus histórico é que ele teria sido qualquer coisa que não aquilo que Lucas e João dirão dele. Vá lá - que tenha se apresentado como messias (e messias judeu!), e que tenha sido acatado por uns e desacatado por outros nessa condição, isso pode constituir fato histórico - nascer de virgem e ser um super anjo um um ser divino, quero crer tratar-se de mitos desenvolvidos pelas comunidades de transmissão dos "querigmas". Ora, Jesus ter-se crido e ter encarnado o papel do "messias" judeu não o faz um Cristo da fé. Esse Jesus histórico é outro - não é o mesmo, os mesmos, Cristos da fé da história da recepção da "fé". Duvida-se? Sempre é bom duvidar.
4. O que me causa estranhamento é a percepção de que a busca pelo Jesus histórico esteja ligada a uma ideologia de fundo - se, de um lado, conduzir a pesquisa, partindo do Cristo da fé, e retornando ao Jesus histórico, se poderia depurar a última imagem dos acréscimos teológicos, traditivos, polêmicos, levados a termo pelas comunidades de fé dos cristianismos primitivos, de outro, o Jesus histórico resultante "ainda" constituiria a mesma "pedra" fundamental da fé cristã. Ou seja, o Jesus histórico é apenas um Cristo mais perfeitamente configurado para a fé contemporânea, mas, para todos os efeitos, a mesma realidade teológica.
5. Procede? Qui prodest? Pensemos, rapidamente, em Abraão. 1) Ezequiel reclama que "aqueles moradores das ruínas" alegam que a terra é deles, porque fora de Abraão, e, sendo eles, descendentes de Abraão, a terra é, então, deles; 2) Em Ex 6, Yahweh confessa a Moisés que Abraão não o conhecia, mas ele, Yahweh, já era o deus de Abraão, sendo que, contudo, conhecido por este como El Shadday; 3) Em Gn 12, Abraão é descrito a erigir um altar a Yahweh!. Ora, aí há um "Abraão" da fé (fé do templo - da golah), um Abraão da fé (fé do povo da terra) e um Abraão (eventualmente) histórico. Nos termos da fé do povo da terra, Abraão era adorador de outro deus - El Shadday (eventualmente, até, uma deusa, como se quer algures). Para a golah (os judeus "cativos" da babilônia), Abraão era um entrave a seus planos de reapropriação das terras perdidas. A solução é trazer Abraão para dentro da fé oficial - Abraão é cooptado. Preço: tornar-se javista. Eis Ex 6. Com o tempo, a conta de chegada de Ex 6 torna-se "tradição" - Abraão é javista desde que sai da "sua terra". Pode-se retroprojetar Yahweh até Enoque (Gn 4,26), e naturalmente, desenhar Abraão como um seguidor de Yahweh.
6. Pergunto: trata-se, aí, em cada caso, do mesmo Abraão? A investigação histórica pelo Abraão histórico faria/fará dele um Abraão equivalente ao Abraão da fé do Pentateuco? Ora, o que se constrói por meio de uma ideologia, só subsiste dentro dessa ideologia - fora dela, dilui-se, e retorna a sua condição pré-ideológica - eventualmente retornando à ideologia original. Não resisto - tudo quanto é sólido, desmancha-se no ar...
7. Não tenho nenhuma segurança quanto a crer ser possível reconstruir um Jesus histórico. Gostei muito de ler Joaquim Jeremias (que Edward Schillebeeckx, de quem Hans Küng disse ser, além dele mesmo, o único teólogo que praticaria teologia histórico-crítica, se serve, mormente quanto ao tema "abba"). Depois de um período de desjudaização de Jesus, levado a termo pela nata da exegese e da teologia alemãs (até onde o programa de demitilogização de Bultmann não tem fundamentos "nazistas"? Perguntem ao André Chevitarese!), torna-se mais compreensível o trabalho de um vida, como o de Joaquim Jeremias, que faz o Jesus histórico voltar a ser o judeu que, evidentemente, foi. As Parábolas de Jesus e Introdução ao Novo Testamento são obras respeitáveis - e as recomendo. Insegurança a parte, contudo, penso ser muito seguro afirmar que, por trás do Cristo da fé, o Jesus histórico nada tem a ver com o Cristo da fé, e a retroação da mística da fé ao Jesus histórico só é possível por fideísmo voluntarista, e, nunca, jamais, em tempo algum, por meio da aplicação da metodologia histórico-crítica - nem se Hans Küng, eventualmente, afiançar-no-lo.
8. Ora, a fé é auto-suficiente. Polêmicas, catequeses e apologias é que demandam silogismos viciados, argumentos tortuosos, convencimentos mágicos. Uma fé plácida e ciosa, apenas crê. Quer-se crer que aquela pessoa história, humana, demasiado humana, o Jesus histórico, seja o ovo natural, ontológico e teológico do Cristo da fé? Que seja. Mas, e isso é óbvio, nenhuma ferramenta histórico-crítica o demonstrará. O máximo que conseguiremos é construir uma hipótese plausível sobre uma provável configuração histórico-social daquele Jesus. E essa reconstrução plausível, se for usada para tão somente substituir, de forma mais purificada, mais depurada, mas burilada, o Cristo da fé - nicênico até a próstata -, eis meu veredicto: tanto esforço, tanto esforço, os montes entraram em trabalho de parto, e pariram um rato.
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Li esse tb...bom d++
abçs
Joeblackvan
Essa é especial, mesmo...
"Parturient montes,
nascetur ridiculus mus."
Abraço!
Elias Aguiar
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