1. Há cem anos, Nietzsche já o sabia: "a consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por conseqüência também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste sistema" (A Gaia Ciência, aforismo 11). Interessante dizê-lo - li-o uma ou duas vezes, antes de O Método, de Morin, e nunca me dera conta de sua implicação. Depois de ler Morin, pegando-me relendo esse aforismo, deparei-me com a alegre constatação de que Nietzsche já dissera parte do que Morin diz hoje, mas cem anos antes. Morin não o nega. Bebe até de Heráclito, um tantinho mais "velho"...
2. Mas interessa-me entrar nesse aforismo. Ele fala de consciência como "órgão": uma emergência orgânica. Nesse sentido é divertido lembrar como Morin responde ao "cogito" de Descartes: sem mitocôndrias, moço, não cogitas nada... Descartes ainda é platônico: ainda pensa que a idéia é anímica, e não telúrica. Nietzsche, não - a consciência, a idéia, o pensamento, a linguagem, tudo é coisa que o corpo, a carne, a "vida" (a própria vida) gerou. Nesse sentido, um capítulo da seleção natural. Não é coincidência que a palavra "evolução" tenha sido usada por Nietzsche, ciente das teorias de Darwin.
3. Pois bem. O olho também é uma "evolução". Não só o olho: a boca, os pés, a pele, os ossos, os pêlos, as mãos, o ouvido, o nariz, o ânus, as genitálias, o umbigo. A "vida" foi-se inventando, não de um em um, mas de muitos em muitos (Stephen Jay Gould, A Vida Maravilhosa). Quando ela inventou o "olho", de algum modo, o olho democratizou-se - certo, tem olhos de inúmeros tipos, mas o olho é democrático. Quando a vida inventou a vértebra, a vértebra, de algum modo, foi sendo emprestada a um conjunto enorme de espécies. A explosão da vida é, ao mesmo tempo, a explosão de órgãos funcionais - malgrado o antagonismo atualizado das formas da vida, a potência democrática dessa explosão revela-se no fato de que mandíbulas todos as têm, olhos, sempre, nadadeiras, cílios, igualmente (ao menos os heterotróficos).
4. O que eu quero dizer com isso é que a seleção natural deu-se por meio de relações ecológicas, mas ela não conseguiu impedir que as descobertas de uma espécie pudessem ser igualmente descobertas por outra (à idéia de que todas as espécies derivariam de uma única, Gould defende uma múltipla origem, com múltiplas variáveis, eventualmente "paralelas", paralelismo evolutivo em face da finitude dos exercícios ecológicos entre testagem e eficiência funcional [cf. Burgess Shale]).
5. Seleção natural "democrática"... E, então, minha pergunta: se a consciência faz parte dessa história, por que ela não é democrática? Por que a espécie humana é a única a ter desenvolvido a consciência, logo, a inteligência consciente, teleológica, intencional, instrumental, na forma como a conhecemos? Por que outras espécieis não se tornaram como nós? Ah, sim, isso fez com que nos considerássemos filhos dos deuses, certamente, mas, já sabemos, desde Feuerbach pelo menos, que, em termos históricos, primeiro concebemos os deuses à nossa imagem, e, depois, outra geração fez de nós filhos deles. Com o que volto à questão: por que apenas nós?
6. Minha resposta-hipótese: a consciência é predatória demais, de modo que a primeira espécie que a desenvolveu acabou impedindo que o mesmo se desse com outras espécies. Não digo que tenha sido intencional: opa, deixa eu dizimar os outros, para que apenas eu seja consciente! Não. Até essa questão é casual, circunstancial, ecológica. Se a seleção natural demanda tempo, muito tempo, mais tempo do que aquele em que a espécie humana goza de consciência, e se a seleção natural demanda circunstâncias ecológicas precisas, talvez o fato de que, por meio dos ganhos competitivos advindos da emergência orgânica da consciência, a espécie humana tenha intervindo de tal modo no planeta que tenha terminado por impedir que as condições que promoveram, nela, a consciência, se instalassem em outros nichos ecológicos, permitindo, eventualmente, que o mesmo ocorresse com outras espécieis.
7. Se eu estiver correto em pensar assim, há um elemento predatório inexorável na espécie humana, não na sua condição animal, biológica, mas na sua condição "humana". Isso explicaria por que os deuses são, em sua esmagadora maioria, praticamente sem exceções, conscientes de seu "poder" incontrolável, terrível - por que os deuses são super-homens, super-conscientes, super-poderosos. Se fôssemos deuses, seríamos como nós mesmos os inventamos. Os super-capitalistas de hoje, e os super-comunistas de ontem, não o comprovam? Sim, tanto quanto os super-religiosos de sempre e os super-ateus de todo dia.
8. Por outro lado, a consciência humana pode decidir abrir mão desse poder, pode construir nichos ecológicos harmônicos. Se desejar. Mas a humanidade, como um todo, é uma abstração - ela não existe. O que existe é cada pessoa, consciente de seu poder e livre para exercê-lo como bem entende. Sempre haverá o risco de eu e/ou você decidirmos que a consciência é um bem valioso demais para que dividamos com inferiores nosso planeta, nossa riqueza, nossa vida, que não é digno de nós a igualdade, a fraternidade, e que esses valores são constituintes da debilidade humana, fraqueza da espécie - aliás, como pensava Nietzsche, aristocrático que era: amor?, misericórdia? - moral de escravos.
9. Se eu estiver certo, somos eco-assassinos, eco-dizimadores - por natureza. Pandora. É desde aí, dilacerados de nossa ingenuidade e inocência cruéis que haveremos de aprender a viver - como praga ou como caranguejo-ermitão. Aí não há nem bem nem mal - apenas história. Mas, diante de nós mesmos e de mais ninguém, havemos de decidir entre um e outro. Porque podemos. Devemos? Não, não - não há quem nos obrigue a tanto. Não há, aí, uma instância do "dever" - nem que eu a invente, porque é inventar hoje, e desinventar, amanhã. É uma questão de querer. Querer hoje. Mas - e amanhã?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Mas interessa-me entrar nesse aforismo. Ele fala de consciência como "órgão": uma emergência orgânica. Nesse sentido é divertido lembrar como Morin responde ao "cogito" de Descartes: sem mitocôndrias, moço, não cogitas nada... Descartes ainda é platônico: ainda pensa que a idéia é anímica, e não telúrica. Nietzsche, não - a consciência, a idéia, o pensamento, a linguagem, tudo é coisa que o corpo, a carne, a "vida" (a própria vida) gerou. Nesse sentido, um capítulo da seleção natural. Não é coincidência que a palavra "evolução" tenha sido usada por Nietzsche, ciente das teorias de Darwin.
3. Pois bem. O olho também é uma "evolução". Não só o olho: a boca, os pés, a pele, os ossos, os pêlos, as mãos, o ouvido, o nariz, o ânus, as genitálias, o umbigo. A "vida" foi-se inventando, não de um em um, mas de muitos em muitos (Stephen Jay Gould, A Vida Maravilhosa). Quando ela inventou o "olho", de algum modo, o olho democratizou-se - certo, tem olhos de inúmeros tipos, mas o olho é democrático. Quando a vida inventou a vértebra, a vértebra, de algum modo, foi sendo emprestada a um conjunto enorme de espécies. A explosão da vida é, ao mesmo tempo, a explosão de órgãos funcionais - malgrado o antagonismo atualizado das formas da vida, a potência democrática dessa explosão revela-se no fato de que mandíbulas todos as têm, olhos, sempre, nadadeiras, cílios, igualmente (ao menos os heterotróficos).
4. O que eu quero dizer com isso é que a seleção natural deu-se por meio de relações ecológicas, mas ela não conseguiu impedir que as descobertas de uma espécie pudessem ser igualmente descobertas por outra (à idéia de que todas as espécies derivariam de uma única, Gould defende uma múltipla origem, com múltiplas variáveis, eventualmente "paralelas", paralelismo evolutivo em face da finitude dos exercícios ecológicos entre testagem e eficiência funcional [cf. Burgess Shale]).
5. Seleção natural "democrática"... E, então, minha pergunta: se a consciência faz parte dessa história, por que ela não é democrática? Por que a espécie humana é a única a ter desenvolvido a consciência, logo, a inteligência consciente, teleológica, intencional, instrumental, na forma como a conhecemos? Por que outras espécieis não se tornaram como nós? Ah, sim, isso fez com que nos considerássemos filhos dos deuses, certamente, mas, já sabemos, desde Feuerbach pelo menos, que, em termos históricos, primeiro concebemos os deuses à nossa imagem, e, depois, outra geração fez de nós filhos deles. Com o que volto à questão: por que apenas nós?
6. Minha resposta-hipótese: a consciência é predatória demais, de modo que a primeira espécie que a desenvolveu acabou impedindo que o mesmo se desse com outras espécies. Não digo que tenha sido intencional: opa, deixa eu dizimar os outros, para que apenas eu seja consciente! Não. Até essa questão é casual, circunstancial, ecológica. Se a seleção natural demanda tempo, muito tempo, mais tempo do que aquele em que a espécie humana goza de consciência, e se a seleção natural demanda circunstâncias ecológicas precisas, talvez o fato de que, por meio dos ganhos competitivos advindos da emergência orgânica da consciência, a espécie humana tenha intervindo de tal modo no planeta que tenha terminado por impedir que as condições que promoveram, nela, a consciência, se instalassem em outros nichos ecológicos, permitindo, eventualmente, que o mesmo ocorresse com outras espécieis.
7. Se eu estiver correto em pensar assim, há um elemento predatório inexorável na espécie humana, não na sua condição animal, biológica, mas na sua condição "humana". Isso explicaria por que os deuses são, em sua esmagadora maioria, praticamente sem exceções, conscientes de seu "poder" incontrolável, terrível - por que os deuses são super-homens, super-conscientes, super-poderosos. Se fôssemos deuses, seríamos como nós mesmos os inventamos. Os super-capitalistas de hoje, e os super-comunistas de ontem, não o comprovam? Sim, tanto quanto os super-religiosos de sempre e os super-ateus de todo dia.
8. Por outro lado, a consciência humana pode decidir abrir mão desse poder, pode construir nichos ecológicos harmônicos. Se desejar. Mas a humanidade, como um todo, é uma abstração - ela não existe. O que existe é cada pessoa, consciente de seu poder e livre para exercê-lo como bem entende. Sempre haverá o risco de eu e/ou você decidirmos que a consciência é um bem valioso demais para que dividamos com inferiores nosso planeta, nossa riqueza, nossa vida, que não é digno de nós a igualdade, a fraternidade, e que esses valores são constituintes da debilidade humana, fraqueza da espécie - aliás, como pensava Nietzsche, aristocrático que era: amor?, misericórdia? - moral de escravos.
9. Se eu estiver certo, somos eco-assassinos, eco-dizimadores - por natureza. Pandora. É desde aí, dilacerados de nossa ingenuidade e inocência cruéis que haveremos de aprender a viver - como praga ou como caranguejo-ermitão. Aí não há nem bem nem mal - apenas história. Mas, diante de nós mesmos e de mais ninguém, havemos de decidir entre um e outro. Porque podemos. Devemos? Não, não - não há quem nos obrigue a tanto. Não há, aí, uma instância do "dever" - nem que eu a invente, porque é inventar hoje, e desinventar, amanhã. É uma questão de querer. Querer hoje. Mas - e amanhã?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Gostei tb
salve Nietzsche, Morin e Osvaldo...trindade pensante.
Abçs
Joe
Devo me ilustrar como um curioso quanto a Nietzsche e mais ainda quanto a Darwin. Hoje vejo como Morin acerta e constróia golpes de marreta e dinamite o pensamento de uma sociedade intera (isso no sentido amplo do termo espécie humana). O " penso logo existo" assume a forma pós-moderna de "existo, logo penso", de forma que a inerencia do existir é pensar, não se prendendo ao termo (agora minimista" espécie. O pensamento não é inserido ao contexto de humanidade mas ao contexto de vida, seja que vida for. A pergunta agora é até quando fecharemos os olhos para o inevitável, o mundo "evoluiu" mas nós continuamos alheios à consciência da mudança. Me atrevo a dizer que nós (sempre que uso nós me refiro à igreja como a conhecemos, ontológica e platonica) deixamos de existir "Morinicamente".
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