1. Durante muito tempo, mantive-me longe da temática. Nunca interessei-me, academicamente, porque minha leitura crítica da Bíblia Hebraica já me dava muito trabalho. Lidar com a temática do Jesus histórico exigiria de mim uma re-introdução ao tema, aos textos, às teses. Ora, a Bíblia Hebraica é cinco vezes maior do que o Novo Testamento. Não tinha tempo.
2. Mas, agora, sou tocado pela entrada da temática na Universidade. A UFRJ, aqui no Rio, lida com o tema, tem feito congressos sobre ele, tem publicado revista eletrônica sobre ele, tem criado grupo(s) de pesquisa. Esse é um fenômeno muito interessante. E empolgante, porque não se pode prever por que caminhos ele construirá seu futuro - sequer se futuro haverá para ele.
3. O fato é que me constrange cá uma dúvida metodológica - será possível a reconstrução dessa grandeza chamada Jesus histórico? Não faço a pergunta como a defender a manutenção de um "Cristo da fé" - o "Cristo da fé", tenho certeza, é noológico, doutrinário, dogmático, construto político-religioso. Não me suscita nem mesmo mais muito interesse, o que é compreensível, após ter descoberto com que barro ele foi moldado. Nunca houve "um" Cristo da fé antes que Nicéia eternizasse um deles, em detrimento da memória de muitas outras formulações traditivas do mesmo tipo e da mesma personagem. Logo, não proponho um acomodamento ao "Cristo da fé" - como Bultmann, que afirmava acabar com os mitos da cultura neotestamentária, e, contudo, ao mesmo tempo manter a "pureza" querigmática, sem me confessar que não sabe que o querigma é puro mito: se é para ir tudo para a lixeira do Windows, também o querigma.
4. O que proponho, então? Que se pense, seriamente, sobre os pressupostos implícitos em nosso acesso aos textos neotestamentários, com os quais e por meio dos quais vamos "reconstruindo" o(s) Jesus histórico(s). Dele(s), já encontrei um campesino, um citadino, um rabi, um ativista político, um pacifista, um quase-essênio, um quase-qumrânico, um mago-taumaturgo. Há de todo tipo - e, ponto importante, para cada "imagem" dessas, há alguns versículos, alguma passagem que, ela por ela, sim, olha lá o campesino, olha lá o citadino, olha lá o rabi.
5. Meu problema é metodológico. Pergunto-me se os textos dos evangelhos podem ser usados para referenciar, direta ou indiretamente, a figura histórica que está por trás do já mítico Jesus evangélico. Na prática, percebo que os textos são tomados como descrições indiretas de alguma dimensão concreta, histórica, real, da vida do (então) Jesus concreto, histórico, real. Tenho dúvidas.
6. Não estou seguro de que o jogo dialogal entre a redação dos evangelhos e as comunidades de destino das narrativas se dê tendo por base a "história" de Jesus, um interesse por ela, uma preocupação factual com ela. Parece-me mais seguro investigar a hipótese de trabalho segundo a qual, na redação dos evangelhos, estão pressentes o escritor/narrador (masculino, feminino, singular, plural, tanto faz - cf. caso a caso), a comunidade catecumênico-catequética, a um tempo comunidade de destino e agente constrangedor da redação, e, por último, mas não menos importante - pelo contrário! - a comunidade ou as comunidades agonísticas, os adversários ou deuteragonitas do escritor/narrador e da comunidade de destino da narrativa evangélica.
7. O que se escreve num evangelho, por hipótese, constitui diálogo com a "tradição" dessas comunidades - não com a "história". Não está em jogo, aí, a "história", mas a tradição, o diálogo e a cooptação. Cada comunidade construiu suas próprias representações, cada vez mais distantes da "real", e, tomando vida própria, tais "memórias" (construções!) tornam-se verdadeiramente significativas. O que os evangelhos dizem para dentro e para fora tem a ver com esse contexto redacional, os conflitos, o front, e não, quer-me parecer, em nenhum grau significativamente epistemológico/metodológico, com a "história" do Jesus real e histórico.
8. Creio, portanto, que é perfeitamente factível reconstruir a perspectiva com que o evangelista imagina(va) Jesus, a perspectiva com que a comunidade para a qual ele escreve imagina(va) Jesus, bem como a perspectiva com que as comunidades adversárias imagina(va)m Jesus. Para isso basta um trabalho relativamente simples de análise do discurso, aliado a uma boa concentração histórico-crítica. Se daí se pode saltar para o Jesus histórico, bem, no momento, tendo a responder "não". Vamos ver como me comporto mais adiante.
9. Penso que estamos no início da pesquisa universitária, ao menos aqui no Brasil. Talvez pudéssemos começar de um modo mais crítico - menos afã para reconstruir o Jesus histórico, mais afã para discutir método. Mas não tenho visto discussão de método. Um exemplo: ano passado, perguntei a uma conferencista no Simpósio sobre o Jesus Histórico, da UFRJ, se ela lidava com as afirmações de Paulo como "históricas" - a conferencista é doutora em história. A resposta foi surpreendente, posto que apologética: se não fizermos assim, como escreveremos uma história do cristianismo primitivo, e, de outro lado, como ler esses textos? Não era uma provocação - era uma questão técnico-metodológica.
10. Historiadores tradicionais não gostam de tocar nos textos bíblicos. Historiadores contemporâneos perderam o medo, são mais corajosos. Temo, contudo, que uma excessivamente rápida demais blitzkrieg aplicada à pesquisa desse Jesus histórico produza um resultado tão controvertido e multifacetado que termine por levar aqueles primeiros a dar de ombros, como a dizer, avisamos...
11. Ontem, fiquei quase três horas em pé, sob o sol inclemente, na Avenida Brasil, tentando evitar que caminhões passassem por cima do meu carro e seu maldito alternador queimado, do meu pobre triângulo e de mim mesmo. Não pude, portanto, testemunhar o debate entre duas visões do Jesus histórico, o que se deu por ocasião do I Simpósio de Estudos sobre a Bíblia e o Antigo Oriente Próximo, na UFF. Meu amigo, André Chevitarese, defendia uma imagem campesina de Jesus, e aquele de quem vou aprendendo a ser amigo, Manuel Rolph Cabeceiras, um Jesus histórico "citadino" (na verdade, mediterraneamente contextual). Gostaria, muito, de ter ouvido os argumentos de ambos. Rolph, hoje, narrou-me sua versão. E pude concluir, dela, que a discussão se dá por meio das imagens desse Jesus, e, para cada uma, cada qual pode recolher versos aqui e ali. E perguntei-me, e ao Rolph - mas, e o método? Os textos falam do Jesus histórico mesmo? Ou, antes, falam de como as comunidades de destino, de disputa e de redação desses evangelhos o imaginavam, décadas depois de a noite ter-se posto sobre o Jesus pré-hermenêutico?
12. Quando essa pergunta é feita, costuma-se responder que se pode atravessar as narrativas, e buscar, nelas, referências implícitas - e seriam essas, não necessariamente as descrições "objetivas" da narrativa, a imagem do Jesus histórico. Mas, insisto - se o que está na cabeça, na boca, na mão do escritor redator, da comunidade de destino e da comunidade de conflito é um Jesus hermenêutico, já mítico, fruto de re-elaborações criativas e fecundas, distantes, engajadas, apologéticas, catecumênico-catequéticas, e nem de longe lhes passa pela cabeça uma referência crítica ao Jesus histórico (sim, nem Lucas!), por que meio, por que arte, poderia eu, leitor, atravessar essas objetivações de consciência, para chegar àquilo de que nenhum deles - em tese - pode mais me informar?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Mas, agora, sou tocado pela entrada da temática na Universidade. A UFRJ, aqui no Rio, lida com o tema, tem feito congressos sobre ele, tem publicado revista eletrônica sobre ele, tem criado grupo(s) de pesquisa. Esse é um fenômeno muito interessante. E empolgante, porque não se pode prever por que caminhos ele construirá seu futuro - sequer se futuro haverá para ele.
3. O fato é que me constrange cá uma dúvida metodológica - será possível a reconstrução dessa grandeza chamada Jesus histórico? Não faço a pergunta como a defender a manutenção de um "Cristo da fé" - o "Cristo da fé", tenho certeza, é noológico, doutrinário, dogmático, construto político-religioso. Não me suscita nem mesmo mais muito interesse, o que é compreensível, após ter descoberto com que barro ele foi moldado. Nunca houve "um" Cristo da fé antes que Nicéia eternizasse um deles, em detrimento da memória de muitas outras formulações traditivas do mesmo tipo e da mesma personagem. Logo, não proponho um acomodamento ao "Cristo da fé" - como Bultmann, que afirmava acabar com os mitos da cultura neotestamentária, e, contudo, ao mesmo tempo manter a "pureza" querigmática, sem me confessar que não sabe que o querigma é puro mito: se é para ir tudo para a lixeira do Windows, também o querigma.
4. O que proponho, então? Que se pense, seriamente, sobre os pressupostos implícitos em nosso acesso aos textos neotestamentários, com os quais e por meio dos quais vamos "reconstruindo" o(s) Jesus histórico(s). Dele(s), já encontrei um campesino, um citadino, um rabi, um ativista político, um pacifista, um quase-essênio, um quase-qumrânico, um mago-taumaturgo. Há de todo tipo - e, ponto importante, para cada "imagem" dessas, há alguns versículos, alguma passagem que, ela por ela, sim, olha lá o campesino, olha lá o citadino, olha lá o rabi.
5. Meu problema é metodológico. Pergunto-me se os textos dos evangelhos podem ser usados para referenciar, direta ou indiretamente, a figura histórica que está por trás do já mítico Jesus evangélico. Na prática, percebo que os textos são tomados como descrições indiretas de alguma dimensão concreta, histórica, real, da vida do (então) Jesus concreto, histórico, real. Tenho dúvidas.
6. Não estou seguro de que o jogo dialogal entre a redação dos evangelhos e as comunidades de destino das narrativas se dê tendo por base a "história" de Jesus, um interesse por ela, uma preocupação factual com ela. Parece-me mais seguro investigar a hipótese de trabalho segundo a qual, na redação dos evangelhos, estão pressentes o escritor/narrador (masculino, feminino, singular, plural, tanto faz - cf. caso a caso), a comunidade catecumênico-catequética, a um tempo comunidade de destino e agente constrangedor da redação, e, por último, mas não menos importante - pelo contrário! - a comunidade ou as comunidades agonísticas, os adversários ou deuteragonitas do escritor/narrador e da comunidade de destino da narrativa evangélica.
7. O que se escreve num evangelho, por hipótese, constitui diálogo com a "tradição" dessas comunidades - não com a "história". Não está em jogo, aí, a "história", mas a tradição, o diálogo e a cooptação. Cada comunidade construiu suas próprias representações, cada vez mais distantes da "real", e, tomando vida própria, tais "memórias" (construções!) tornam-se verdadeiramente significativas. O que os evangelhos dizem para dentro e para fora tem a ver com esse contexto redacional, os conflitos, o front, e não, quer-me parecer, em nenhum grau significativamente epistemológico/metodológico, com a "história" do Jesus real e histórico.
8. Creio, portanto, que é perfeitamente factível reconstruir a perspectiva com que o evangelista imagina(va) Jesus, a perspectiva com que a comunidade para a qual ele escreve imagina(va) Jesus, bem como a perspectiva com que as comunidades adversárias imagina(va)m Jesus. Para isso basta um trabalho relativamente simples de análise do discurso, aliado a uma boa concentração histórico-crítica. Se daí se pode saltar para o Jesus histórico, bem, no momento, tendo a responder "não". Vamos ver como me comporto mais adiante.
9. Penso que estamos no início da pesquisa universitária, ao menos aqui no Brasil. Talvez pudéssemos começar de um modo mais crítico - menos afã para reconstruir o Jesus histórico, mais afã para discutir método. Mas não tenho visto discussão de método. Um exemplo: ano passado, perguntei a uma conferencista no Simpósio sobre o Jesus Histórico, da UFRJ, se ela lidava com as afirmações de Paulo como "históricas" - a conferencista é doutora em história. A resposta foi surpreendente, posto que apologética: se não fizermos assim, como escreveremos uma história do cristianismo primitivo, e, de outro lado, como ler esses textos? Não era uma provocação - era uma questão técnico-metodológica.
10. Historiadores tradicionais não gostam de tocar nos textos bíblicos. Historiadores contemporâneos perderam o medo, são mais corajosos. Temo, contudo, que uma excessivamente rápida demais blitzkrieg aplicada à pesquisa desse Jesus histórico produza um resultado tão controvertido e multifacetado que termine por levar aqueles primeiros a dar de ombros, como a dizer, avisamos...
11. Ontem, fiquei quase três horas em pé, sob o sol inclemente, na Avenida Brasil, tentando evitar que caminhões passassem por cima do meu carro e seu maldito alternador queimado, do meu pobre triângulo e de mim mesmo. Não pude, portanto, testemunhar o debate entre duas visões do Jesus histórico, o que se deu por ocasião do I Simpósio de Estudos sobre a Bíblia e o Antigo Oriente Próximo, na UFF. Meu amigo, André Chevitarese, defendia uma imagem campesina de Jesus, e aquele de quem vou aprendendo a ser amigo, Manuel Rolph Cabeceiras, um Jesus histórico "citadino" (na verdade, mediterraneamente contextual). Gostaria, muito, de ter ouvido os argumentos de ambos. Rolph, hoje, narrou-me sua versão. E pude concluir, dela, que a discussão se dá por meio das imagens desse Jesus, e, para cada uma, cada qual pode recolher versos aqui e ali. E perguntei-me, e ao Rolph - mas, e o método? Os textos falam do Jesus histórico mesmo? Ou, antes, falam de como as comunidades de destino, de disputa e de redação desses evangelhos o imaginavam, décadas depois de a noite ter-se posto sobre o Jesus pré-hermenêutico?
12. Quando essa pergunta é feita, costuma-se responder que se pode atravessar as narrativas, e buscar, nelas, referências implícitas - e seriam essas, não necessariamente as descrições "objetivas" da narrativa, a imagem do Jesus histórico. Mas, insisto - se o que está na cabeça, na boca, na mão do escritor redator, da comunidade de destino e da comunidade de conflito é um Jesus hermenêutico, já mítico, fruto de re-elaborações criativas e fecundas, distantes, engajadas, apologéticas, catecumênico-catequéticas, e nem de longe lhes passa pela cabeça uma referência crítica ao Jesus histórico (sim, nem Lucas!), por que meio, por que arte, poderia eu, leitor, atravessar essas objetivações de consciência, para chegar àquilo de que nenhum deles - em tese - pode mais me informar?
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Caro Professor Osvaldo,
A melhor explicação que até hoje encontrei para a busca pelo Jesus histórico veio de uma professora de Teologia Feminista: "crise de masculinidade".
Deixa eu tentar explicar. Os referenciais másculos estão se perdendo, por causa da tão observável diluição das meta-narrativas, logo, a sociedade vai — consciente ou inconscientemente — em busca de seus velhos fundamentos. Os arcanos da religião tornam-se extremamente atrativos, sobretudo diante da plural fragmentação de sentido pós-moderna. Jesus histórico se ergue como um símbolo ressuscitado dos escombros da religião ocidental pela intelectualidade.
Este trabalho, no entanto, não deixa de oferecer novas possibilidades de leitura que fujam um pouco do literalismo simbólico. Acredito, assim, na eficácia pastoral do Jesus histórico. Nem que seja para apresentar um homem diferente do ideal de masculinidade dominante.
Um abraço.
Olá, Felipe.
Bom revê-lo. Sempre arguto.
Não tornaria universal a explicação de sua "fonte" - desde a posição dela, bastante marcada, ela, assim, generaliza a "razão" da busca. Que, contudo, é anterior mesmo ao "nazismo" que caracterizou parte de uma era da academia exegético-teológica alemã. A busca é mesmo tão antiga quanto Albert Schweitzer. Tem-se de verificar se já lá essa explicação de gênero é aplicável, ou se ela se aplicaria a casos isolados, aqui e ali, mais contemporâneos.
Seja como for, não me preocupa a razão em si. Mas a "coisa". O que ela é, pode ser - é viável?, impraticável? Penso que cada qual terá suas razões para meter-se à tarefa. O que interessa é se ela é real, ou, tal qual as razões de cada um, puro "mito".
Um abraço fraterno. Muito boa sua contribuição.
Osvaldo.
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