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domingo, 13 de setembro de 2009

(2009/471) Que diabo de Deus é esse

1. Assim que o livro estiver disponível quero ler esse do Saramago sobre Caim e Abel. Acho que aí haverá algumas "sacadas" fundamentais em relação a esse texto. De minha parte, escrevi alguma coisa tempos atrás sobre esse texto. Posto aí para compartilhar. É pra ajudar a fazer força!

2. Gênesis 4 é uma continuação de Gênesis 3. Lá havia sido registrada a transgressão do primeiro casal humano. A serpente havia sido utilizada como elemento simbólico e colocada no texto de modo totalmente negativo. Após a relativização e a transgressão das ordens divinas, o próprio Deus expressou condenações diversas a cada um dos personagens envolvidos na trama. Havíamos, porém, observado que, apesar da tendência negativa na apresentação da história imaginária, os autores do texto não deixaram de considerar que a transgressão é um passo necessário para a constituição do ser humano enquanto ser autônomo e livre. Essa autonomia e essa liberdade devem ser experimentadas e vividas fora do jardim. Fora da redoma da relação de obediência a Deus será o espaço para viver a vida real, permeada de conflitos.

3. Gênesis 4 trata agora de um novo tipo de conflito. Para isso utiliza novamente linguagem mítica. Trata-se agora de trabalhar o conflito entre irmãos, ou se quisermos, entre as pessoas de forma geral. Trata-se de conflitos humanos! No texto certamente foram alocados fragmentos de experiências históricas. Difícil, porém, é definir quais são exatamente essas experiências.

4. Fica claro no texto que o conflito básico se dá entre dois irmãos. Cada qual tem sua ocupação principal. Caim, o mais velho, é lavrador; Abel, o mais novo, é pastor de ovelhas. Muitos intérpretes queriam ver aí o motivo principal do conflito. Diziam que haveria aqui como que um conflito entre representantes de “classes” sociais diferentes. Isso é uma possibilidade, mas não é a única, nem parece ser a mais plausível. Isso porque no Israel antigo ser lavrador e ser pastor de ovelhas eram atividades em boa medida complementares, muitas vezes compartilhadas na mesma família.

5. Uma outra possibilidade para tentar explicar o conflito entre Caim e Abel, que resulta na morte de Abel, é a qualidade das ofertas de ambos. Vários intérpretes dizem que Caim teria apresentado uma oferta de qualidade inferior, enquanto que a oferta de Abel consistiria na melhor amostra. Mas também para isso não existe base no texto. O texto hebraico, que é o original, simplesmente afirma que “Caim fez entrar para o lugar cúltico dos frutos da terra (adamah) uma oferta (hebraico: minhah) para Iahveh”. Nada se diz sobre a qualidade da oferta; utiliza-se simplesmente o termo técnico usual para ofertas litúrgicas.

6. Abel procede da mesma forma. Dele se diz que “fez entrar das primícias do seu rebanho (gado pequeno) e da gordura deste” (v. 4). Também aqui se trata de oferta qualificada em termos litúrgicos. Uma “primícia” é a amostragem das crias que nasceram por primeiro de uma ovelha ou cabra.

7. Mas logo o texto afirma que Iahveh se agradou da oferta de Abel e se desagradou da oferta de Caim. Por quê? Qual é a razão oculta, visto que ambas as ofertas eram qualificadas?

8. Pode-se responder a isso indicando para a soberania de Deus, dizendo que Deus é livre e soberano para aceitar a oferta que quiser. Com isso, o nó da questão está corretamente transferido para Deus. Isso está em conformidade com o texto. É o próprio Deus que cria o problema; Ele é quem gera o conflito. A pergunta “por quê?” novamente remete para a esfera humana. Afinal, não gostaria de afirmar que Deus, sendo soberano, também é arbitrário. Por isso, a resposta para a rejeição da oferta de Caim deve ser buscada no nível das relações humanas.

9. Gênesis 4 é o primeiro texto da Bíblia em que se utiliza a palavra “pecado”. Convém dizer que o termo “pecado” não aparece em Gênesis 3! O pecado de Caim foi recorrer à violência, matando seu irmão após perceber que ao Deus Iahveh agradava mais a oferta de Abel. Violência e homicídio são recursos de Caim para resolver conflitos, mesmo conflitos de ordem religiosa.

10. Como o texto é formulado em linguagem mítica, supõe-se que o evento imaginário tenha ocorrido nas origens da história. Mas o que se conta pode ter acontecido em vários momentos da história de Israel. O conflito entre lavradores e pastores pode ser uma dessas experiências. Uma outra experiência muitas vezes repetida é a matança de gente inocente pelas elites hebraicas. Para isso, basta ler com cuidado algumas passagens de alguns profetas. Miquéias, por exemplo, denuncia que a elite de Jerusalém mata gente pobre e “estica sua carne como num panelão” (Mq 3). Amós denuncia muitos desmandos dos governantes contra camponeses. O homicídio entre irmão é, pois, uma experiência repetida na história de Israel.

11. Na história de Gênesis 4, o fratricida Caim recebe uma chamada de atenção da parte de Deus. Na verdade, Deus vigia pelo sangue de Abel; vigia pelo sangue dos “abéis”, dos inocentemente mortos na história. Pela lei da vingança, que vigorava em todo o ambiente do antigo Oriente no primeiro milênio antes de Cristo, a morte de Abel deveria ser vingada com a morte de Caim. Na história mítica de Gênesis 4, isso se torna impossível, porque, num primeiro momento, parecem não existir outras pessoas. Mas é o próprio Deus quem toma a defesa de Caim. Este receberá como sentença ter que viver como errante na face da terra. Mas ele não poderá ser morto, sendo isso a sua proteção. Um suposto “sinal de Caim” o protegerá e ele poderá viver em lugar longe de pátria.

12. Para mim, nesta parte da história de Gênesis 4, estão sendo digeridas e trabalhadas experiências da própria história de Israel. Os grupos da elite que foram deportados de Israel e de Judá em sucessivos exílios podem representar este Caim. Afinal, se levarmos a sério as denúncias dos profetas, especialmente de Miquéias, Amós e Isaías, a elite governante é responsabilizada pelas sucessivas injustiças, mortes e violências dentro de Israel. As vítimas são os “abéis”, que jazem em vários lugares da terra e seu sangue clama por justiça. Esse é o seu pecado! Diante desse pecado não adianta trazer ofertas qualificadas, como a de Caim. Isso seria simplesmente expressão de religiosidade hipócrita, como também é denunciado por exemplo nas críticas cultuais de Amós (Amós 4,4-6; 5,21-24). Quem assim outrora procedeu e por isso teve sua oferta rejeitada tem ainda a chance de viver de modo errante. Mesmo longe da pátria, gente assassina pode contar com a proteção de Deus!

13. As elites deportadas, outrora violentas e opressoras, não são totalmente renegadas por Deus. Deus revoga a lei usual da vingança de sangue. O círculo da morte e da matança é interrompido. O texto diz que, pelo sinal de Caim, gente como Caim pode continuar a viver, ainda que seja fora do seu espaço de origem. O que se originar desse tipo de gente pode resultar em civilizações, em cidades, em cultura. O gérmen da violência parece sempre rondar essas estirpes. Por isso, deve haver leis que regulam as relações e protegem os mais fracos.

14. Com a interrupção do círculo da violência, a vida pode se refazer. Isso é bem indicado no final do texto, dizendo que de Adão nasceu um outro filho, em lugar de Abel, chamado Set e deste nasceu um descendente que viria a ser o primeiro invocador do nome de Iahveh.

15. Há muitas particularidades dentro do texto de Gênesis 4. Por ser texto em estrutura mítica, que trabalha muitos elementos simbólicos, são também diversas as suas leituras. Aqui destacamos como se procura resolver o conflito entre pessoas com o uso de violência. O pecado da violência é uma tentação constante. Ao ser humano, contudo, cabe dominá-lo. É isso que Deus diz para Caim, mas é palavra que vale também a todos que estão diante desta tentação.


HAROLDO REIMER

[Publicado originalmente em: REIMER, Haroldo; CEBI-GO. Gênesis. Casa comum: espaço de vida, cuidado e felicidade. São Leopoldo: Cebi, 2007, p. 33-36]

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

(2009/457) "Que diabo de Deus é este?"







1. Vem aí mais um livro de José Saramago. Dessa vez, meteu-se com Caim. Não é tanto abuso, depois de ter-se metido com o próprio Jesus. Digamos que, depois de um atropelamento, aguardemos um velocípede atravessar a rua, enquanto esperamos na calçada.

2. Mas podemos esperar o circo armado. A turba dos "teólogos", reverendíssimos, há de pulular as páginas de jornais e revistas especializados, invadir púlpitos e conferências cristaníssimas, entulhar blogs e sites, poluir o mundo com suas verborrágicas homilias.

3. Hão de dizer que se deve respeitar a fé... É como aquele meu amigo pastor, que em 1993 dizia que igreja não é lugar para Exegese, porque o povo não agüenta, é fraco da cabeça, quero dizer, ele dizia do povo, e eu, dele, e o repetiu, para mim, dezesseis anos depois (ontem!) - o que significa que ele nada fez nesses dezesseis anos para mudar o quadro, antes, serviu-se dele, até o tutano, e ainda há de lamber os dedos por outros tantos...

4. Contudo, a pergunta de Saramago ou é novelesca, ou dirige-se um pouco à massa cinzenta de nosso povo. Porque a pergunta é infantil demais, tola demais, boba demais, para ser séria. Bem, muitos - a esmagadora maioria - dos cristãos hão de levá-la a sério, e, por isso, mais uma vez, amaldiçoar o ateu da bela ilha, mas isso apenas porque a maior parte da teologia dos cristãos concretos é de cabestro, rasa como poça d'água, insuficiente, pouca, rala, parca, triste.

5. Ora, não se trata, sob nenhuma circunstância, de "Deus". Não é "Deus" quem rejeita Caim em benefício de Abel. É tão-somente, ou algo próximo disso, uma comunidade de sacerdotes cruentos, mandando dizer ao povo que, doravante, culto agrário, essa história de oferecer trigo, cevada, vinho e azeite, é coisa do passado, e que, doravante, Deus quer é churrasco mesmo, como Noé aprendeu e já foi fazendo...

6. Não há nada de propriamente "teológico" aí (pelo menos não um teológico que não, ao mesmo tempo, político). É político-social, mesmo, econômico. Mas é que a política de então, e parte da de hoje, movimenta-se melhor por meio de andores e altares. Com água benta e incenso, então, aí é que vai que é uma beleza...

7. "Que diabo de Deus é este?" Um "Deus-diabo" fabricado por programas divinos-diabólicos de controle social, gente sacerdotal, parindo mitos para, com eles, controlar pés e mãos de homens e de mulheres, que, sincronicamente falando, já lhes amaldiçoara parto e lavoura... Isso se faz há milênios, e, pelo cheiro do ar, ainda se há de fazê-lo por bons séculos...

8. Quando Marcião rejeitou esse "Deus", alegando que ele não podia ter nada a ver com o Pai de Jesus, estava Marcião fazendo exatamente isso que, agora, faz Saramago, e que todo cristão devia fazer - a crítica da ideologia, depois da qual deve vir a constatação de que um "Deus" que age assim deve ser, no mínimo, "disciplinado". Se não é coisa de o mandar definitivamente embora, que, ao menos, imponham-se-lhe algumas regras de ética. Não é bem o que eu pessoalmente faria, mas acho que já seria de bom tamanho - por hora...

9. É como eu disse outro dia em classe, para delírio dos não-calvinistas, e horror dos calvinistas (numa classe de teologia, sempre há dois dois): se "Deus" for calvinista, isto é, se cria três pessoas, uma pro céu, e duas pro inferno, se eu for essa uma, quando chegar lá, peço pra sair. Um "Deus" assim não é boa coisa, não. É como esse aí de Caim. E, então, faço como se diz certo Jesus ter feito, ido a andar com desprezados...

10. Mas Saramago é Saramago. Pilar diz que fez literatura, e, não, política. Mais esse quero ler.

"Caim não é um tratado de teologia, nem um ensaio, nem um ajuste de contas: é uma ficção em que Saramago põe à prova a sua capacidade narrativa ao contar, no seu peculiar estilo, uma história de que todos conhecemos a música e alguns fragmentos da letra. Pois bem, com a cabeça alta, que é como há que enfrentar o poder, sem medos nem respeitos excessivos, José Saramago escreveu um livro que não nos vai deixar indiferentes, que provocará nos leitores desconcerto e talvez alguma angústia, porém, amigos, a grande literatura está aí para cravar-se em nós como um punhal na barriga, não para nos adormecer como se estivéssemos num opiário e o mundo fosse pura fantasia. Este livro agarra-nos, digo-o porque o li, sacode-nos, faz-nos pensar: aposto que quando o terminardes, quando fizerdes o gesto de o fechar sobre os joelhos, olhareis o infinito, ou cada qual o seu próprio interior, soltareis um uff que vos sairá da alma, e então uma boa reflexão pessoal começará, a que mais tarde se seguirão conversas, discussões, posicionamentos e, em muitos casos, cartas dizendo que essas ideias andavam a pedir forma, que já era hora de que o escritor se pusesse ao trabalho, e graças lhe damos por fazê-lo com tão admiráveis resultados" (Pilar del Río).

OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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