segunda-feira, 7 de setembro de 2009

(2009/457) "Que diabo de Deus é este?"







1. Vem aí mais um livro de José Saramago. Dessa vez, meteu-se com Caim. Não é tanto abuso, depois de ter-se metido com o próprio Jesus. Digamos que, depois de um atropelamento, aguardemos um velocípede atravessar a rua, enquanto esperamos na calçada.

2. Mas podemos esperar o circo armado. A turba dos "teólogos", reverendíssimos, há de pulular as páginas de jornais e revistas especializados, invadir púlpitos e conferências cristaníssimas, entulhar blogs e sites, poluir o mundo com suas verborrágicas homilias.

3. Hão de dizer que se deve respeitar a fé... É como aquele meu amigo pastor, que em 1993 dizia que igreja não é lugar para Exegese, porque o povo não agüenta, é fraco da cabeça, quero dizer, ele dizia do povo, e eu, dele, e o repetiu, para mim, dezesseis anos depois (ontem!) - o que significa que ele nada fez nesses dezesseis anos para mudar o quadro, antes, serviu-se dele, até o tutano, e ainda há de lamber os dedos por outros tantos...

4. Contudo, a pergunta de Saramago ou é novelesca, ou dirige-se um pouco à massa cinzenta de nosso povo. Porque a pergunta é infantil demais, tola demais, boba demais, para ser séria. Bem, muitos - a esmagadora maioria - dos cristãos hão de levá-la a sério, e, por isso, mais uma vez, amaldiçoar o ateu da bela ilha, mas isso apenas porque a maior parte da teologia dos cristãos concretos é de cabestro, rasa como poça d'água, insuficiente, pouca, rala, parca, triste.

5. Ora, não se trata, sob nenhuma circunstância, de "Deus". Não é "Deus" quem rejeita Caim em benefício de Abel. É tão-somente, ou algo próximo disso, uma comunidade de sacerdotes cruentos, mandando dizer ao povo que, doravante, culto agrário, essa história de oferecer trigo, cevada, vinho e azeite, é coisa do passado, e que, doravante, Deus quer é churrasco mesmo, como Noé aprendeu e já foi fazendo...

6. Não há nada de propriamente "teológico" aí (pelo menos não um teológico que não, ao mesmo tempo, político). É político-social, mesmo, econômico. Mas é que a política de então, e parte da de hoje, movimenta-se melhor por meio de andores e altares. Com água benta e incenso, então, aí é que vai que é uma beleza...

7. "Que diabo de Deus é este?" Um "Deus-diabo" fabricado por programas divinos-diabólicos de controle social, gente sacerdotal, parindo mitos para, com eles, controlar pés e mãos de homens e de mulheres, que, sincronicamente falando, já lhes amaldiçoara parto e lavoura... Isso se faz há milênios, e, pelo cheiro do ar, ainda se há de fazê-lo por bons séculos...

8. Quando Marcião rejeitou esse "Deus", alegando que ele não podia ter nada a ver com o Pai de Jesus, estava Marcião fazendo exatamente isso que, agora, faz Saramago, e que todo cristão devia fazer - a crítica da ideologia, depois da qual deve vir a constatação de que um "Deus" que age assim deve ser, no mínimo, "disciplinado". Se não é coisa de o mandar definitivamente embora, que, ao menos, imponham-se-lhe algumas regras de ética. Não é bem o que eu pessoalmente faria, mas acho que já seria de bom tamanho - por hora...

9. É como eu disse outro dia em classe, para delírio dos não-calvinistas, e horror dos calvinistas (numa classe de teologia, sempre há dois dois): se "Deus" for calvinista, isto é, se cria três pessoas, uma pro céu, e duas pro inferno, se eu for essa uma, quando chegar lá, peço pra sair. Um "Deus" assim não é boa coisa, não. É como esse aí de Caim. E, então, faço como se diz certo Jesus ter feito, ido a andar com desprezados...

10. Mas Saramago é Saramago. Pilar diz que fez literatura, e, não, política. Mais esse quero ler.

"Caim não é um tratado de teologia, nem um ensaio, nem um ajuste de contas: é uma ficção em que Saramago põe à prova a sua capacidade narrativa ao contar, no seu peculiar estilo, uma história de que todos conhecemos a música e alguns fragmentos da letra. Pois bem, com a cabeça alta, que é como há que enfrentar o poder, sem medos nem respeitos excessivos, José Saramago escreveu um livro que não nos vai deixar indiferentes, que provocará nos leitores desconcerto e talvez alguma angústia, porém, amigos, a grande literatura está aí para cravar-se em nós como um punhal na barriga, não para nos adormecer como se estivéssemos num opiário e o mundo fosse pura fantasia. Este livro agarra-nos, digo-o porque o li, sacode-nos, faz-nos pensar: aposto que quando o terminardes, quando fizerdes o gesto de o fechar sobre os joelhos, olhareis o infinito, ou cada qual o seu próprio interior, soltareis um uff que vos sairá da alma, e então uma boa reflexão pessoal começará, a que mais tarde se seguirão conversas, discussões, posicionamentos e, em muitos casos, cartas dizendo que essas ideias andavam a pedir forma, que já era hora de que o escritor se pusesse ao trabalho, e graças lhe damos por fazê-lo com tão admiráveis resultados" (Pilar del Río).

OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio