sexta-feira, 27 de julho de 2012

(2012/578) Das folhas de cobrir vergonhas - e também do véu dos olhos

1. Estou convencido, porque nisso tenho pensando a última década, de que Gênesis 2 e 3, em sua redação sacerdotal, o que se teria dado por volta do século V antes de Cristo, consiste numa peça ideológica de controle da população campesina da Judá persa, controle ideológico esse que teria paralelo, por exemplo, nas orientações que Platão redige na República e nas Leis, cerca de um século depois - esse registro platônico se teria dado, também aposto, por força de sua "recepção" das estratégias político-religiosas persas, que os gregos "herdaram".

2. Nesse sentido, quando Adão e Eva "descobrem" que estavam "nus" e fazem para si roupas de folhas, de vegetal, de planta, de produtos do campo, isso Deus parece não aprovar, e imediatamente faz para eles roupas de pele, isto é, roupas que se fazem com o sacrifício do animal e a extração de sua pele. A "moral" teológica disso ainda se vê em Paulo - e na fé cristã de dois mil anos depois: sem derramamento de sangue, não há perdão de pecados.

3. Descendo para o nível histórico-social, a que corresponde - sempre! - a intenção de fundo dessas narrativas que parecem falar de coisas celestes, de anjos, de salvações azuis, tratava-se de o Templo interditar a eficiência simbólica do culto agrário, substituindo-o pelo culto cruento, de sacrifício de animais.

4. A mesma estratégia retórico-teológica encontra-se na "história" de Caim e Abel. Caim deseja ofertar - como Adão e Eva! - produtos do campo. Abel, já um perfeito entrosado nas coisas do Templo, Abel deseja sacrificar o animal. É disso que Yahweh gosta, e, por isso, recusa o culto de Caim. Se Caim mata Abel, disso faço derivar a hipótese histórico-social de que, quando os sacerdotes interditaram o milenar culto agrário campesino, houve revolta - lembro-me dos camponeses de Lutero! Caim matar Abel me parece a cooptação sacerdotal dessa revolta, dessa revolução, dessa reação violenta, para dentro do mito, e, com isso, faze dos camponeses, de novo, maldição e maldade...

5. A opção de Yahweh pela morte do animal vivo aparecerá ainda em dois episódios, e não tenho espaço nem tempo aqui para aprofundar a questão, mas trata-se do sacrifício de Noé e do sacrifício do cabrito em lugar de Isaque. Em cada uma dessas passagens, lá está a mão sacerdotal, sempre com uma intenção específica...

6. De tudo isso estou seguro. 

7. Mas desejo servir-me da cena de cobrirem-se as vergonhas... A história da religião judaico-cristã concentra-se nisso: no "cobrimento". É necessário cobrir o sangue no chão, cobrir as vergonhas desnudas...

8. Todavia, essa mesma religião (mas haverá alguma verdadeira exceção?) vive de um outro cobrimento necessário: o cobrimento da consciência...

9. Essas histórias todas que narrei brevemente acima só funcionavam e só funcionam por uma única razão: os ouvintes estão com as consciências cobertas, com os olhos velados. Quem ouve essas histórias as entende como os que as narraram queriam que fossem entendidas - e, entendendo-as assim, submetem-se a elas, entregam-se a elas, acreditam nelas, escravizam-se (e aos outros) a elas.

10. Deve lê-las, todavia, não pela intenção que elas carregam, mas pela compreensão do significado político dessa intenção. São narrativas de prender, não de soltar, de amarrar, não de desamarrar, de encarcerar, não de libertar.

11. Alguém dirá: o Osvaldo, além de acreditar na "realidade" própria das coisas, ainda acredita na tese anacrônica de que a religião é alienação! Osvaldo é um homem preso ao século XIX...

12. Não me "defenderei". Acredito na realidade própria das coisas e acredito profundamente, hoje, mais do que ontem, no fato de que as religiões são alienação, são alienantes, e para isso são programaticamente empregadas pelos seus oficiais.

13. Sou um homem preso no século XIX - e livre no XXI. Mas conheço muita gente que, ao vislumbrarem a aurora do século iconoclasta, rapidamente de lá correram com a máxima velocidade...

14. Invariavelmente, são homens de redil... E não importa se são ovelhas... ou pastores de ovelhas.

15. Redil.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

3 comentários:

NELSON LELLIS disse...

Caetano Veloso disse em "Coração vagabundo" (Documentário), que se possível, numa revolução, acabaria com todas as religiões. "Isso tudo é uma idiotice", segundo o cantor.

Tudo bem, temos a tragédia (ou seria comédia? ou seria cômico se não fosse trágico?)das religiões que circulam seus fiéis e os prendem como querem. Trazem às suas mentes essa "cobertura" de que fala. Um mundo paralelo à realidade, certo?
Mas sabemos que será impossível acabar com tudo isso, visto que toda essa caminhada gera certo sentido pra vida do que crê.

Qual seria, portanto, a proposta, visto que a religião sempre estará diante e adiante de nós com todas essas belicosas ferramentas que insistem construir o sentido surreal?

A quem poderíamos visitar para essa resposta? Lucrécio?, que entendia que a ideia de Deus tinha origem no medo e na ignorância da humanidade?; Feuerbach?, Deus como projeção psicológica das melhores virtudes do homem?; Freud?, em cujo pensamento religião é neurose causada pela sublimação dos instintos?; Nietzsche?, que via a religião como arma ideológica dos miseráveis?; Marx?, que em oposição a Nietzsche via a religião como ópio do povo?

Lellis

Peroratio disse...

Lellis, uma coisa é viver a religião por dentro, viver-se a partir da própria religião. Isso é experimentá-la.

Mas está longe de ser entendê-la.

A religião, até hoje, nutre-se da alienação NECESSÁRIA.

A questão é: é possível à religião sobreviver, quando aceitamos os postulados de Feuerbach, Marx e Freud?

Minha resposta: na forma como ela é hoje, não. Se você aceita a crítica moderna - e eu aceito até os ossos - da religião, não, ela não sobrevive na forma como existiu até aqui.

Todavia, não acredito (é crença, ainda) que ela acabe: mas que se transforme, porque as forças antropológicas que a geraram voltarão a exercer sua ação genésica. Postulo, pois, que a religião se transformaria, mas não que acabaria - mas, na forma em que se dá hoje, não resta dúvida: se você se desaliena, ela se torna prisão.

NELSON LELLIS disse...

De acordo.

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