sábado, 28 de julho de 2012

(2012/579) As mães como parteiras da religião

1. Nas assim tratadas como "cartas paulinas", fala-se de avó e mãe como inculcadoras da "fé" - leia-se: das doutrinas, das práticas, da religião, da teologia...

2. É verdade. A cena mais significativa é aquela de Maria, mãe de dias do menino Jesus, futuro Cristo, futuro crucificado, futuro salvador, futuro Deus, ela, mãe e mulher de fé, com o infante divino nos braços, de cabeça baixa, em frente ao sacerdote, a cumprir os ritos de purificação pela imundície dela e do filho de colo, Maria e Jesus, ambos, judeus de lei, imundos, pois, ele assim imundo da imundície dela, e ela, plácida, pia e fielmente, a cumprir as purificações da religião, da lei, da fé, de Deus...

3. A cena é significativa, porque é a própria mãe a aceitar a imundície própria e do filho, e a submeter-se, para sua purificação e a dele, aos ritos da fé, da religião, de Deus. Meu filho, um imundo. Mas eu o purifico - por meio da lei, do rito, da religião, da teologia, de Deus.

4. Maria há de contar essas coisas ao filho.

5. Contaram-nas a nós.

6. Difícil fugir a essas sobredeterminações iniciáticas do berço. Platão sabe, e isso ele põe na boca de Sócrates, que a geração diretamente submetida à pregação dos mitos, porque sabe de quem eles veem, talvez não se entregue assim tão passiva e pacificamente a eles, mas, as seguintes, seus filhos e netos, bem, por força da introjeção ideológica subjetiva - o Poder introjetado na própria consciência crente - serão muito mais segura e facilmente domesticadas...

7. É a estratégia da eficiência de médio e longo prazo. Pôr a doutrina na consciência do sujeito é como pôr lá um soldado armado a vigiar e punir, a garantir a submissão inexorável do corpo e da carne, que a alma é retórica do poder - é o corpo que ele quer, mão, pé, boca e sexo.

8. A Lei sabia disso: essas palavras ordenadas deviam ser inculcadas na cabeça das crianças, de manhã, de tarde, de noite, andando, deitando, assentando...

9. Ensina a criança o caminho em que ela deve andar...

10. Mães e pais - mas, dada a proximidade maternal, mais elas - são instrumentos excepcionais do Poder, elas mesmas, antes disso, vítimas dele, e, vitimadas, instrumentos de máxima e sádica eficiência...

11. Daí que isso me explica um tanto a minha própria condição de crítico: minha mãe.

12. Uma mulher de e dos mistérios. Católica, como todos. Umbandista de prática e rito. Espírita, na intelectualidade da consciência. Um tanto quanto rosacruz. Adepta das parapsicologias curiosas dos 70. Uma buscadora que nunca se encontra nem aqui nem ali, mas acolá e mais além. Dessas de ler tudo de Lobsang Terça-Feira Rampa. Isso é minha mãe.

13. E mais: jamais deixou-nos enfiar-nos, crianças, nos ritos. Fez assim também ao cigarro: dois suficientemente efisêmicos maços diários, mas, com o dedo em nossa cara e os olhos de fogo e diabo, nos dizia que cigarro mata e, se fumássemos, ela nos mataria antes deles...

14. Não nos tornamos fumantes, nem adeptos de nenhuma das religiões dela.

15. E, no entanto, impregnados fomos - eu fui, até a alma - dessa condição eclética, amorfa, interna, intestina, subjetiva, independente, livre. 

16. Sinto-me carregado das sublimidades dos mistérios, mas avesso prostaticamente a toda e qualquer institucionalidade castradora, mórbida, patológica e patética, como são todas, conquanto, até certo ponto e medida, necessárias (por enquanto?).

17. Minha neurose de liberdade, pois, é, também ela, fruto de uma prisão.

18. Minha mãe, o cárcere e a carcereira.

19. Sou grato, mãe.

20. Oxalá tenhas jogado a chave no fundo de Oceano...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

NELSON LELLIS disse...

O que C.S. Lewis, Edgar Morin e Osvaldo L. Ribeiro têm em comum? Seria a mãe como "imagem religiosa", como um vazio a enfrentar, como um relacionamento religioso?...

Osvaldo, há alguns meses tenho pensado escrever um ensaio sobre isso, mas não tenho material suficiente. As bibliografias dos demais autores estão em minha biblioteca, falta a tua. rsrs

Amplexos.
Lellis

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